Praxe à moda do Porto

Arquivos 12 Fev 2025

Praxe à moda do Porto

Por José Correia Guedes

Corria o ano de 1975 e eu tinha sido largado há um par de meses como copiloto de Boeing 727/100. A escala do dia (ou melhor, da noite) consistia em fazer um voo de carga entre o Porto e Amsterdam com regresso a Lisboa. O avião era um exemplar da versão QC (Quick Change) que podia alternar entre transporte de passageiros ou levar exclusivamente carga. Dessa vez seria a minha estreia na operação “100% cargo”, tarefa de que quase todos os pilotos gostavam pois os horários não eram assim tão rigorosos e não havia quaisquer preocupações com passageiros. Descolaríamos de Lisboa ao princípio da noite e estaríamos de volta ao amanhecer do dia seguinte. Uma noitada, portanto.

Iria fazer equipa com o Comandante “X”, uma figura lendária da história da TAP, um veterano dos tempos do DC-4 Skymaster e do Lockheed Super Constellation que se aproximava rapidamente da idade da reforma. Era uma daquelas pessoas que todos na empresa admiravam e a quem tudo era permitido, tal o prestígio que carregava consigo. Completava a tripulação um Mecânico de Voo (era assim que se chamavam na altura) também com grande experiência e cuja idade deveria rondar os 50 anos. “Maçarico” mesmo era só eu.

Entre Lisboa e o Porto o avião voava completamente vazio, só depois iria receber a carga que nos competia transportar para Amsterdam. Assim sendo o Cte “X” aproveitou para se divertir. Fez a descolagem da Portela e pilotou à mão durante quase todo o voo. E quando digo “à mão” era mesmo só com uma mão, porque na outra segurava o cigarro aceso de que nunca abdicava. Enquanto isso eu fazia os procedimentos inerentes à função de copiloto: check lists, comunicações, navegação, trabalho administrativo, etc. Uma seca.

Autorizados para uma aproximação visual direta à pista 36 de Pedras Rubras o Cte “X” continuava a divertir-se mantendo a velocidade nos 300 kts ou mais enquanto saboreava a paisagem nocturna. Perto do PG, a ajuda rádio de referência para a pista em questão, virou-se para mim e disse: “Toma lá o avião e vê se aterras direitinho”.

“O quê??? O velho está louco”, pensei. “Voamos a 300 kts quando devíamos estar a 210 ou menos, como vou desatar este nó?” Os outros, Cte e M/V, nem pestanejaram. Agarrei-me aos speedbrakes, ao trem de aterragem (quando a velocidade o permitiu), aos flaps e a tudo quanto tinha direito para tentar desacelerar um avião que ainda por cima estava muito leve. Tudo aquilo vibrava, parecia um terramoto. Comecei a suar de nervosismo. Pouco depois, quando pedi o check list de aterragem, o mecânico não conseguiu conter uma gargalhada. Foi então que percebi: estava a ser “praxado”. E de que maneira.

Lá consegui aterrar o avião o melhor que pude e como a operação correu bem fiquei à espera do aplauso do Cte “X”. Nada. Nem uma palavra sobre o assunto. Limitou-se a dizer:

– A noite vai ser longa, vamos ali ao bar do aeroporto comer qualquer coisa enquanto o avião carrega.

E lá fomos. Embora já fosse quase meia noite ainda havia vários clientes no bar, pelo que era necessário manter uma certa discrição. Estávamos todos fardados e naquela altura (tal como ainda hoje) uma farda da TAP impunha respeito e admiração.

O empregado aproximou-se da mesa, cumprimentou-nos respeitosamente e perguntou:

– É o costume, senhor Comandante?

– Sim, claro.

Durante alguns minutos conversámos sobre banalidades até que finalmente “o costume” chegou. Ele eram croquetes, bolinhos de bacalhau, queijos, azeitonas, pão torrado e … um bule de chá com três chávenas. Eu que nem sou apreciador do produto bem teria preferido uma Coca Cola ou algo semelhante mas quem é que se atrevia a discordar do Cte “X”? Nem pensar.

Sempre um gentleman, o Cte pegou no bule e começou a servir os seus companheiros de aventura:

– Já sabem. É só uma chávena para cada um. Nem mais uma gota.

Eu nem queria acreditar. Então agora até o chá tem que ser racionado? Eu até nem gosto, mas se gostasse? Era mesmo estranho, o nosso herói. Instantes depois o Cte “X” ergueu a sua chávena e brindou: “À vossa saúde, rapazes.”

Fiquei de boca aberta. Desde quando se fazem brindes com… chá??? O velho passou-se, pensei.

Foi então que levei a minha chávena à boca e sorvi um trago. Era vinho branco fresquinho. Verde, como eu gosto. Devo ter feito uma cara de perfeito idiota, de tal forma que o mecânico cuspiu meio croquete ao tentar conter o riso. Estava cumprida a segunda parte da praxe. Divertida e inocente, como deviam ser todas as praxes, mas coisas que só se faziam quando não havia passageiros a bordo. Aí as coisas fiavam mais fino.

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