A história do Datsun que veio de traineira

Arquivos 01 Set 2024

A história do Datsun que veio de traineira

Por Hélder Oliveira

Era Janeiro de 1976 em Angola, depois da independência, a guerra civil intensifica-se. Em Moçâmedes e Porto Alexandre (actual Tombwa) dois dos “movimentos de libertação” (UNITA e FNLA) travam intensos combates dentro das cidades.

A população civil teme o pior. Apesar de quererem continuar em Angola, (na sua maioria portugueses de segunda geração) a falta de condições de segurança, de produtos de primeira necessidade e de cuidados de saúde, começam a equacionar a fuga para a Namíbia. Nesta altura a ponte aérea de Luanda para Lisboa já tinha terminado e a ligação de Moçâmedes a Luanda também estava inviabilizada, devido à guerra civil que se instalou em todo o território. Eu, na altura com 15 anos, já conduzia o Datsun 1200 (AAD-05-56) da família. Antes dos acontecimentos e em zonas sem trânsito já fazia uns “piões” nas estradas com areia das “garroas” no Deserto do Namibe.

Em Porto Alexandre, terra de pescadores, de fábricas de farinha e óleo de peixe, as traineiras eram a última alternativa da fuga para sul. O que veio a acontecer a 10 de Janeiro. Dezenas de traineiras em Porto Alexandre com os depósitos de gasóleo atestados, preparam-se para qualquer eventualidade.


Centenas de pessoas arrumam os seus pertences, em malas, sacos e caixotes dirigindo-se  para os vários cais de madeira das fábricas espalhadas pela baía onde estão acostadas as traineiras a postos para navegar.

Eu fiquei incumbido, pelo meu pai, Manuel Serra de Oliveira, de levar as coisas mais importantes de casa em caixas de cartão e a roupa em sacos de serrapilheira para a Dea II, uma traineira de 25 metros, da empresa Venâncio Guimarães e Sobrinho, onde o meu pai era o encarregado geral e técnico mecânico, na altura responsável pela gerência e ocupado com a preparação e coordenação dos meios para a fuga nos barcos Dea II, Vega e Lubango.

O Datsun 1200 foi o veículo utilizado nestas várias viagens ao cais, carregando os pertences da família. Por último e ao fim do dia, com a traineira já preparada para zarpar, coloquei duas tábuas entre o cais e a Dea II e, com o máximo cuidado possível coloquei o Datsun dentro do barco.

Cerca de sessenta traineiras de Porto Alexandre e o navio mercante Silver Sky, que acolheu mil e duzentas pessoas, no porto de Moçâmedes rumaram juntos ao porto mais próximo, logo depois da fronteira do Cunene, até Walvis Bay, na Namíbia. Dois dias de viagem, com famílias inteiras acomodadas dentro dos barcos, incluindo crianças de tenra idade.

Na chegada a Walvis Bay fomos apoiados pela Cruz Vermelha Internacional e pelas autoridades da Namíbia que proporcionaram a deslocação de todos aqueles que pretendiam viajar para Portugal a partir do Campo de Refugiados de Windoek, capital do estado, numa “ponte aérea” organizada por Portugal para o efeito.

Eu fiquei com o meu pai na traineira Dea II com uma tripulação de mais três homens. Tendo em vista a criação de uma empresa de pesca no Brasil, sete das traineiras partem para o Rio de Janeiro, incluindo a Dea II, numa viagem de três meses.


O Datsun 1200 continuava lá, tapado com uma cobertura cinzenta, encostado à amura do barco, agora com o convés completamente preenchido com bidons de 200 litros de gasóleo para a viagem.

Chegados ao Brasil, a situação não foi fácil. As autoridades brasileiras não autorizaram a constituição de uma empresa de pesca e passados três meses estávamos a preparar a viagem para Portugal. Uma viagem que se revelou muito atribulada.

Em Novembro a costa ocidental estava a ser fustigada por mau tempo e nós em mar alto. Conseguimos enviar mensagens de socorro e fomos finalmente localizados e ajudados pela Marinha Portuguesa perto do Cabo Espichel. Entrámos no porto de Sesimbra sãos e salvos.

O Datsun com o temporal sofreu bastante, devido aos bidões de gasóleo embaterem lateralmente com a ondulação, provocando muitas mossas na lateral do carro. Mais tarde, e já em Vila Real de Santo António o meu pai mandou pintar o Datsun e vendeu-o, tendo-lhe perdido o rasto.

Entretanto, como filho de peixe sabe nadar, tenho mantido a paixão por automóveis clássicos. Construí a “Oliveira’s Garage” para acomodar e restaurar os meus 10 clássicos “populares” dos anos 60 e 70.

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