Arquivos • 03 Jul 2024
O automóvel mais vendido nos Estados Unidos, há décadas, é a musculosa picape Ford F150. No Brasil, uma picape menor, a Fiat Strada, também tem frequentado com assiduidade a liderança no ranking dos veículos mais comercializados. E, a cada ano, novos modelos são anunciados, em milionárias campanhas publicitárias, pelas montadoras. Com ou sem crise, o mercado para este tipo de veículo tem se mantido bastante acelerado. O que comprova que as picapes caíram definitivamente no gosto dos brasileiros – do campo e das cidades.
Nas últimas décadas, os veículos espartanos de outrora se transformaram em automóveis de luxo, utilizados largamente também nas grandes capitais do país. Versáteis, as camionetes com caçamba actuais tanto podem carregar insumos agrícolas para as fazendas durante a semana e levar seus proprietários à missa aos Domingos como conduzir famílias urbanas inteiras ao shopping.
Ferramenta imprescindível na lida do campo, as picapes tiveram forte protagonismo no desenvolvimento do agronegócio brasileiro. Robustas, projetadas para enfrentar lama, calor intenso, poeira, estradas precárias e transportar cargas pesadas (com pouca manutenção), as valentes picapes ajudaram a desbravar novas fronteiras agrícolas e têm levado a civilização e o desenvolvimento econômico à regiões remotas do Brasil desde a década de 50. O país deve muito a essas guerreiras.
Não por acaso, uma legião de antigomobilistas brasileiros – ligados ou não ao agro – se dedica, atualmente, a preservar modelos icônicos do segmento, que marcaram época na paisagem rural brasileira. A nostalgia do campo, mesmo entre aqueles que já nasceram nas grandes cidades, se manifesta na proliferação de clubes de colecionadores de picapes por todo o país, nas redes sociais e nos encontros de veículos clássicos, eventos em que as camionetes atraem um público ávido por saber um pouco mais sobre a vida agropastoril de antigamente.
Dono de um pequeno criatório de cavalos crioulos em Guaíba, na região metropolitana de Porto Alegre, no Sul do Brasil, o empresário Cézar Augusto Maciel viveu a infância cercado por picapes. Seu pai era dono de uma oficina mecânica na pequena cidade de economia agropecuária e muitos de seus clientes eram ruralistas. Menino, brincava de “dirigir” as “possantes” em manutenção na oficina paterna.
Desde então, Maciel acalentava o sonho de possuir uma Chevrolet C10 – ícone rural dos anos 1970. O desejo se realizou em 2021, com a compra de um vistoso modelo 1974 marrom de seis cilindros em linha. “O avô de um dos meus amigos tinha uma C10 e sempre gostei muito delas. Trouxe para a vida adulta esta paixão pelo design, pela motorização robusta e pelo conforto da suspensão”, conta.
Diretor do Veteran Car Club do Brasil/RS, e integrante do Clube da C10 no Facebook, Maciel adquiriu o veículo já restaurado. Precisou apenas melhorar a parte mecânica, refazendo freios e ajustando o motor e a suspensão. “Não tive dificuldade para encontrar peças. O mercado ainda dispõe de muita oferta de componentes e tenho um mecânico, que já me atendia em outros automóveis antigos, que conhece a C10 e faz uma excelente manutenção.”
“Paixão de criança”. Assim o especialista em desenvolvimento de produtos Telmo Ricardo Wollmann, filho de produtores rurais em Cachoeira do Sul, na região central do Rio Grande do Sul, define o seu gosto por picapes. O avô teve uma Ford F1 “Woody” (parte da carroceria de madeira) americana nas cores amarelo e creme que encantava o menino. Trocou por uma Chevrolet Brasil cabine dupla com quatro faróis. Depois, seu pai comprou uma F100 1962 “saia-e-blusa” (pintura em duas cores) -, que agora – restaurada – pertence a ele.
A paixão pelas grandalhonas vem de longe, como se vê. “Adoro picapes pelo seu tamanho, pelo ronco do motor V8, e pelo cheirinho característico que têm até hoje. Depois da restauração, a F100 do meu pai ficou exatamente igual ao que era quando nova. Hoje temos mais uma C10 1974, que ainda está na fazenda para ser restaurada”.
E qual é a sensação de dirigir um veículo dos anos 1960 pelas ruas congestionadas de Porto Alegre, onde Wollmann vive hoje? “É muito divertido. No para e arranca do trânsito, chega a ser emocionante. As perguntas sempre aparecem: qual o ano? Gasta muito? Não vende, né? Meu avô tinha uma ‘Chevrolet’ dessas…”
Desde zero quilômetros na família, a Ford F75 1976 do colecionador argentino radicado no Brasil Rodrigo Ruiz está, como todos os seus automóveis, encontra-se num estado impecável. “Era a que tinha o melhor custo-benefício em sua época”, lembra o empresário, que a utilizou por muito tempo em sua transportadora e para abastecer uma propriedade rural em Tapes, a 126 quilômetros de Porto Alegre. Apesar de pegar no pesado regularmente, a picape da Ford sempre recebeu manutenção semelhante à dispensada aos reluzentes clássicos de sua coleção. “É muito fácil mantê-la. Ainda se encontram peças para ela”, diz Ruiz. A versão militar foi o primeiro veículo deste tipo exportado pelo Brasil – 150 unidades, para Portugal.
Com mecânica simples e resistente, e o carinho com que são tratadas por seus proprietários, essas relíquias dos primeiros tempos do agronegócio brasileiro certamente ainda vão muito longe. Mas, agora, merecidamente aposentadas do trabalho duro, sem precisar sacolejar por estradas esburacadas, transportar tonéis “nas costas” e atravessar atoleiros.
Fotografias: Eduardo Scaravaglione