Arquivos • 30 Abr 2022

Em termos de praxes sempre fui muito mais “vítima” que “carrasco”, provavelmente porque quando entrei na TAP esta era ainda uma companhia muito pequena em que os mais velhos, principalmente comandantes, eram uma espécie de semi deuses a quem tudo era permitido. Faziam “gato sapato” de tudo quanto vestisse uma farda e andasse no ar, copilotos em especial. Alguns desses comandantes, digo-vos, tinham especial talento e criatividade para a matéria; Frei Torquemada teria algo a aprender com eles. Depois, com o crescimento, a coisa foi perdendo a graça e acredito que a tradição já hoje não seja o que era.
Mas vamos lá falar das duas vezes em que me recordo de ter sido “carrasco”. Carrasco bonzinho, mas carrasco.
Certa vez tive uma viagem para o Maputo e como fazia anos de casado convidei a minha mulher para vir comigo. Iríamos passar quatro ou cinco dias no belo Hotel Polana em pleno verão com a possibilidade de dar uns mergulhos na Macaneta e no Bilene. Quem recusaria?
Logo após a chegada tive a infeliz ideia de anunciar o acontecimento aos restantes tripulantes, recebendo em troca as felicitações que se adivinham mas correndo riscos desnecessários de cujas consequências só mais tarde me dei conta: à noite, quando entramos no quarto, aquilo mais parecia uma cena de guerra do Vietname do que um apartamento do Polana tantas e tais eram as armadilhas montadas por todo o lado. Baldes de água fria que caiam automaticamente quando se abria qualquer porta, cama feita “à francesa”, açúcar nos lençóis, sinos e campainhas ligado a fios de pesca, música em altos berros e sei lá mais o quê. Claro que não há sono que resista a tais desmandos e lá fiquei acordado até às tantas. Foi então que resolvi “vingar-me”. Juntei uma meia dúzia de cartões de pedidos de pequeno almoço, preenchi-os um a um com opções diferentes e depois fui pendurá-los nas portas dos quartos dos principais suspeitos/as. O pedido era para as 5 da manhã.
No dia seguinte, na piscina do Polana, choviam queixas:
– Sabes o que me aconteceu hoje?
– ???
– Às 5 da manhã bateram à porta do meu quarto. Dei um salto na cama e gritei estremunhado: quem é???
– Piqueno armorço, senhor.
– Piqueno quê???
– Piqueno armorço, senhor. Às cinco, como pediu
– Às cinco??? Quem teria sido o fdp???
Anos mais tarde ia pilotar um Boeing 737 para o Funchal e logo nas Operações constatei que o copiloto ia fazer o seu primeiro voo depois de largado. Chamava-se Pedro e tinha vindo directamente do Colégio Militar para os aviões. Muito educado, impecavelmente uniformizado, visivelmente disciplinado e bem preparado, estava mesmo a “pedi-las”.
Aterrámos em Santa Catarina (hoje Cristiano Ronaldo…) ao fim da tarde e seguimos para o hotel. No dia seguinte iríamos a meio da tarde para qualquer lado, talvez Londres ou Paris. Depois dos banhos e da mudança de roupa juntámos a tripulação e fomos jantar ao Jacquet, um restaurante então muito na moda não tanto pela qualidade do peixe assado na brasa mas pela exuberante personalidade do proprietário (“Oh comandante, hoje pode-se dizer caralhadas?”). Em circunstâncias normais o Pedro assumiria apenas o pagamento das bebidas mas achei que o nosso Menino da Luz merecia mais.
Assim, terminado o jantar mandei o Pedro com duas ou três meninas num táxi para um Bar / Discoteca muito em voga na altura e disse que pouco depois iria lá ter com os outros colegas.
Assim foi. O grupo de carrascos que liderava correu para o hotel e com a conivência do chefe da recepção, habituadíssimo a estes e outros “filmes”, subimos ao quarto da vítima. Aí chegados abrimos a porta e com cuidado pegámos na cama “a peso” para não desmanchar os lençóis. Depois transportamo-la para a espaçosa varanda que dava para a piscina e juntámos as mesinhas de cabeceira para dar mais realismo ao “décor”. Depois fomos ter com o grupo e fazer mais um brinde ao futuro do Pedro na TAP.
No dia seguinte apareceu-me ensonado na sala do pequeno almoço:
– Então, dormiste bem?
– Mais ou menos. Acordei às sete da manhã com o sol a bater na cara e um melro aos pés da cama. Tirando isso…