Arquivos • 08 Jun 2024
Existem memórias de infância que nos ficam para sempre. Recordo-me dos meus pais possuírem um Fiat 600 das primeiras séries – com as portas a abrir ao contrário – e, devido à refrigeração, nas subidas da Serra da Estrela, onde vivem (ou em qualquer viagem de Verão) a mesma ser feita por etapas. Tempo para beber água, descansar e conviver. Mas era um automóvel fantástico que aos 18 anos tentei comprar porque é inigualável e, no meu caso, pretendia tirar-lhe o tecto e colocar lona. Aliás, na altura até existia a moda de retirarem os para-choques aos automóveis para os tornar mais “desportivos”.
Daí que, no dia que o meu pai refere que “vamos comprar um Datsun 1200” (ainda não havia Google nem revistas da especialidade), na minha tenra idade, achei que seria um automóvel fantástico… ainda por cima era japonês, que significava fiabilidade.
Recordo-me bem das explicações sobre as restrições à importação de automóveis e também que, não era possível – pelo menos naquele stand – escolher a cor. Assim, o meu pai tinha preferência pelo branco e o amigo que também ia comprar, pelo verde. Durante algum tempo, sonhava com o automóvel!
Recordo-me do dia que ele veio e de ao final do dia o ir espreitar ao “stand” para o contemplar – loja com vidros e onde estavam três Datsun – um branco, um verde e o outro não me recordo (talvez fosse vermelho pois há uma semana encontrei em plena estrada um número muito igual à matrícula do meu pai – EG-31-43 e o vermelho EG 38-43).
Mal dormi para, no outro dia, o poder ir levantar. E afinal, não era o branco como queria o meu Pai (já nessa altura havia a moda desta cor frigorifico) e ficou com o verde garrafa.
Passar de um Fiat 600 com pouca potência para um Datsun 1200 era um upgrade. O tamanho também era distinto e eram 70cv ao invés de 29cv, creio eu. Lembro-me de admirar cada detalhe: os cromados, o cheiro da napa; os plásticos, o conforto dos bancos e o imenso espaço interior. Lembro-me de o volante ter dois botões em cada lado para a buzina e, tal como o do Fiat era enorme, mas a direção era assistida a braços, sendo que o Datsun tinha o motor à frente. Os opcionais que traziam eram… nenhuns. O rádio ao centro não vinha pois, por algum motivo – e creio ter ouvido que só podia ter rádio e não leitor de cassetes – o meu pai adquiriu um rádio, que ficou do lado esquerdo inferior e que, supostamente tinha maior qualidade, além de leitor de cartuchos. A antena ainda era daquelas que ficava junto ao pilar A e dobrava pelo tejadilho. Ah! E tinha a célebre fita de enjoo e as palas traseiras (creio na altura ser uma obrigação legal).
Bom também havia uma opção para colocar um pequeno suporte plástico em vidro junto às janelas laterais para que o vidro viesse entreaberto e não houvesse tanto ruído do vento e não entrasse chuva, mas não se incluiu.
E, na minha pequenez, recordo-me de ocupar o espaço entre os bancos dianteiros onde me encaixava enquanto o meu Pai conduzia (os cintos traseiros ainda não tinham chegado e daquela posição apreciava a vista para a estrada e a condução). Eu que adorava automóveis (e já fazia nos meus automóveis de brincar tunning estético) questionava muitas das funcionalidades do veículo (é certo que eram poucas, mas qualquer uma era uma descoberta).
O conceito de ergonomia ainda dava os primeiros passos, a usabilidade era algo que um dia viria a surgir, mas era assim em toda a indústria da época.
Conduzir na altura exigia um ritual, exigia tempo, mas este existia, pois era um tempo onde existia tempo, passe o pleonasmo.
A condução recordo-me ser distinta da do FIAT. Mais assertiva, mas, pelo facto da Covilhã ser toda em empedrado, a tração traseira, o baixo peso traseiro, os 70cv e a ausência de ESP e ABS, exigiam ao condutor agilidade para sentir a traseira a descolar… aprendendo que travar não era a solução.
Recordo-me de conversas do meu pai, naquele que foi um ex-libris da Covilhã e que infelizmente desapareceu – o Café Montalto – onde nas mesas de mármore eu comia os únicos iogurtes em copo de vidro e bebia leite Vigor e onde os amigos do meu pai teciam elogios à fiabilidade japonesa e aos baixos custos de manutenção do Datsun.
Teve a sua primeira grande viagem – ou não vivêssemos “perto” de Espanha até Segura, Espanha, e passando o controlo fronteiriço uma das pedras da Ponte Romana de Segura (na altura de enorme dimensão para mim e hoje uma banal ponte) estava solta e levantou parte do chão do Datsun na zona do passageiro… ainda o Datsun não tinha um mês.
O Datsun viveu connosco muitos anos antes de ser vendido para um emigrante suíço e foi daqueles automóveis que ficou na minha memória. Foi nele que a minha mãe aprendeu a conduzir, foi nele que fazíamos as viagens para o Algarve (mais de 600 km por estradas nacionais – um dia de viagem) e mesmo para Vieira de Leiria. Calcorreou o país e fez parte da minha infância. Dormia no banco de trás – antes do meu irmão nascer e me tirar o lugar com o berço – tudo sem cinto de segurança. Eram tempos diferentes onde valorizávamos muito a família, o convívio, os passeios. Mas é também importante refletirmos para a evolução que o setor automóvel teve, onde após a indústria automóvel ter conseguido implementar os seus modelos, foi o momento de valorizar questões como a segurança – ativa e passiva – o cinto de segurança, estruturas deformáveis (quando antes se considerava que uma chapa forte é que era seguro), o ABS, o ESP, os airbags.
Hoje, os nossos filhos não assistiram a esta transição de um mundo fascinante. Nasceram com a internet, o ar condicionado, a automatização, a IA, o turbo nos automóveis, as autoestradas, e por aí em diante.
Sinto-me um privilegiado por ter experienciado esta enorme transição que me deixou memórias de um tempo que agora só pode ser contado por imagens ou pelos coleccionadores.