Arquivos • 27 Out 2023
Entre meados dos anos 70 e início da década de 80, uma disputa pela identidade de um automóvel tão peculiar e único quanto o homem que o concretizara, levou a que a lendária construtora britânica Rolls-Royce lutasse em tribunal pelo direito à proteção da sua imagem. O resultado desse processo dita, até hoje, os limites do que pode ou não ser adornado com o icónico duplo R.
Mundialmente reconhecida como o pináculo do luxo e requinte automóvel, não é surpreendente constatar que a Rolls-Royce se definisse como bastante particular no que diz respeito aos seus símbolos mais reconhecíveis, nomeadamente o logótipo RR, a grelha estilo “templo grego” e claro, o Espírito do Êxtase. Como tal, o uso não autorizado destes elementos num automóvel de concepção amadora que representava a total antítese do ethos da companhia, não foi visto com bons olhos pela Rolls-Royce.
A criação em causa fora apropriadamente batizada de “A Besta”. Na versão Mk I, a Besta constituiu a realização de uma ideia surgida nos finais da década de 60 na mente do engenheiro Paul Jameson. Este adquiriu um motor “Meteor”, construído pela Rover e semelhante ao Rolls-Royce Merlin (embora adaptado para uso em tanques ao invés de aviões), colocando-o seguidamente num chassis feito à medida. O projeto utilizou componentes de uma série de automóveis britânicos tais como Wolseley e Jaguar, com a caixa de quatro velocidades a ser originária da Rolls-Royce.
Foi precisamente a caixa de velocidades que levaria à passagem do automóvel ao seu segundo proprietário; Jameson acabaria por não concluir o ambicioso projecto, deixando a Besta de 700 cavalos sem carroçaria, cabendo ao novo dono, John Dodd, a responsabilidade de vestir o automóvel a rigor. Dodd, um especialista em caixas automáticas, fora quem adaptara uma caixa da GM à Besta, substituindo a originalmente instalada por Jameson devido à incapacidade deste elemento de lidar com o binário do enorme 12 cilindros. A Besta passaria então a envergar uma carroçaria em fibra de vidro concebida por Bob Phelps, figura de referência no Drag Racing em Inglaterra. Phelps idealizou o aspeto dramático da Besta a partir de um Ford Capri Mk I, apelando à imagem da Rolls-Royce com o uso de capot (adaptado), grelha e pára-choques de um Corniche.
A Besta, então patrocinada pela BP, ganhou rapidamente lugar no coração do público britânico e europeu, conquistando a capa de diversas revistas do mundo automóvel e surgindo em programas televisivos (mais tarde, viria a marcar presença até no incontornável Top Gear). A criação de Dodd cimentou igualmente posição nas páginas do livro do Guiness, à data, sob o título de automóvel de estrada mais potente do mundo. John Dodd testava com frequência os limites do automóvel nas autobahns sem restrição, com a Besta a rodar confortavelmente no limiar dos 300 km/h, podendo ultrapassar os 320. Aliás, o proprietário referiu em entrevista à BBC em 1974 que o propósito da Besta era superar em desempenho todos os outros automóveis, podendo, ao mesmo tempo, funcionar com recurso à gasolina mais barata disponível, um aspecto útil pois o depósito da Besta era então de 140 litros.
À medida que o automóvel alcançava notoriedade, crescia igualmente o desagrado da Rolls-Royce pelo verdadeiro “monstro de Frankenstein” que Dodd conduzia de evento em evento pela Europa. Relatos do final da década de 70 reportam que a proverbial gota de água para o fabricante chegou sob a forma de telefonemas de clientes a requererem que a companhia lhes construísse versões da Besta, após terem sido ultrapassados sem cerimónias por Dodd nas auto-estradas do velho continente. Curiosamente, em entrevista à Revista EVO em 2008, Dodd admitiu ter sido ele próprio o autor dos míticos telefonemas, os quais referiu fazer “com bastante frequência” e recorrendo a “diferentes sotaques”.
O processo instaurado pela Rolls-Royce não viria, contudo, a avançar, pois durante a viagem de regresso de um salão automóvel na Suécia, A Besta roçou o asfalto, provocando a quebra de um dos maciços reservatórios de óleo. O incidente deu origem a chamas, as quais envolveram e consumiram por completo o automóvel.
Dodd recusou deixar a Besta morrer. O chassis foi transportado para Inglaterra e deu-se início a um ambicioso processo de recuperação e melhoramento que se encontraria concluído em 1981. Um novo motor, desta vez um verdadeiro Merlin de 27 litros do lendário Spitfire foi associado ao chassis, providenciando – pelo menos – 850 cavalos. O novo reservatório de óleo passou a contar com uma capacidade de quase 38 litros, os travões e eixo diferencial traseiro foram retirados de um Jaguar XJ12 e a suspensão dianteira e caixa de direcção doadas por um humilde Austin 110. E não, a Besta não dispõe de direção assistida.
Bob Phelps voltou a idealizar uma carroçaria em fibra para o automóvel. Desta vez, a inspiração brotou do Reliant Scimitar, com portas moldadas a partir do Cortina Mk III, sendo a Besta Mk II uma criação inteiramente distinta no departamento da estética e, refira-se, menos conseguida. A versão Mk I definia-se certamente como de proporções curiosas, mas possuía igualmente uma determinada elegância inerente a linhas bem definidas e a uma coerência estilística. A versão Mk II no entanto bebeu influências dos muscle cars americanos da década de 70, substituindo quatro ópticas por oito, acrescentando também múltiplas entradas e saídas de ar no capot e guarda-lamas; em suma, uma encarnação excessiva e bastante menos atraente que a predecessora. A Besta Mk II voltou, previsivelmente, a incorporar elementos da Rolls-Royce, nomeadamente, a grelha e o icónico Espírito do Êxtase. Esta insistência de Dodd, contra os conselhos de Bob Phelps, colocou novamente o automóvel na mira da Rolls-Royce.
A posição de desafio tomada por Dodd assegurou que o caso chegasse à justiça, desta vez, com uma série de audiências realizadas em Westminster para as quais John fez questão de conduzir a Besta. No último dia dos procedimentos, o advogado de Dodd remove-se do caso, aconselhando o então já ex-cliente que não conduzisse o automóvel para o tribunal naquela ocasião, pois caso a decisão não lhe fosse favorável – o cenário mais previsível – A Besta seria confiscada. Alternativamente, o sempre desafiante Dodd optou por comparecer, acompanhado da esposa e filhos, a cavalo. Vestia igualmente uma camisola adornada com o logótipo da Rolls-Royce, algo que os representantes da companhia não consideraram humoroso.
Dodd acabaria por perder o caso e, devido a intervenções que causaram desagrado ao magistrado, seria também considerado como em desacato ao tribunal, sendo punido de acordo e perdendo, no processo, a sua casa, o seu avião e uma série de outras possessões. Contudo, a Besta permaneceria na garagem de John até à actualidade. O britânico radicou-se em Málaga onde continuou a trabalhar em transmissões automáticas de Rolls-Royce e Bentley, abrindo uma oficina para esse efeito. A Besta perdeu a grelha da Rolls-Royce, sendo substituída por um “JD” de grandes dimensões, mas continuou a fazer as delícias do público em Espanha, tornando-se numa verdadeira celebridade local, saindo no entanto poucas vezes, atendendo ao consumo de aproximadamente um litro por quilómetro. O automóvel passou algum tempo em Inglaterra de modo a completar um restauro mecânico, regressando depois a Málaga para uma equivalente intervenção estética.
A disputa em torno da Besta estabeleceu uma séria advertência para quaisquer projetos futuros que se aventurassem no domínio da imagem da Rolls-Royce. A questão foi até referenciada em 2019 pelo prolífico coleccionador Jay Leno, aquando da conclusão do seu Rolls-Royce Merlin, uma criação que combinou um chassis Rolls-Royce original de 1934, um motor Merlin V12 oriundo de um avião da Segunda Guerra Mundial e uma carroçaria em alumínio construída especialmente para o projeto. Segundo Leno, não se encontra patente o logótipo da Rolls-Royce no automóvel precisamente devido à disputa levada a cabo em torno da Besta.
Controversa e popular em igual medida, a Besta permanece como testemunho das potencialidades e consequências de uma posição de desafio ao cânone de uma marca.
Deixe um comentário