127 Rustica: O Fiat Brasileiro construído pela Lamborghini

Clássicos 18 Jun 2024

127 Rustica: O Fiat Brasileiro construído pela Lamborghini

Por Pedro Fernandes

Resultado de uma confluência improvável de fatores, o Fiat 127 Rustica tem a distinção de se definir como o primeiro pequeno automóvel da FIAT com pretensão de aptidões sobre terrenos mais desafiantes. Saliente-se, é claro, que à data do lançamento do Rustica (1979), a FIAT já não era de modo algum estranha aos veículos todo-o-terreno, com o prolífero e duradouro Campagnola encontrando-se em produção desde o (então) já longínquo ano de 1951.

Contudo, o 127 Rustica foi o primeiro dos grandes heróis das massas por parte da companhia italiana pensado para manter competência fora de pavimento, propósito que viria a ser alargado (e elevado à quase perfeição) com o extraordinário Panda 4X4 a partir de 1983, o qual contava com o valioso know-how da Steyr-Puch. Apesar de mais sólido que os 127 de produção regular, o Rustica continuava no entanto a ser apenas um automóvel de tracção dianteira, questão que lhe limitava significativamente as ambições no domínio do “fora de estrada”. Apesar disso, tendo contado com uma curta produção de 5000 unidades, a qual resultou de uma conjuntura caótica no seio da Lamborghini, e afirmando-se como uma das variantes mais sui generis do 127, o Rustica define-se, na actualidade, como bastante raro e muito desejável.

O Fiat 127 seguiu a receita simples do 128 e dos Autobianchi Primula, A112 e A111, nomeadamente, motor transversal à dianteira e tracção igualmente dianteira, tornando-se um campeão de vendas para a Fiat, com um milhão de unidades a saírem de Mirafiori em apenas três anos. Mas o sucesso do 127 não se limitou à Itália, sendo este modelo também construído, sob licença, em Espanha, na Polónia, na antiga União Soviética e no Brasil. Aí, no Estado de Minas Gerais, o Fiat 127 evoluiria para o denominado 147 o qual, por sua vez, veria ainda a produção alargada à Argentina, Chile, Uruguai, Venezuela e Colômbia.

De construção mais robusta que a do 127, o 147 apresentava também algumas ligeiras distinções do modelo original no campo da estética, eventualmente dando até origem a variantes muito particulares como o sedan Oggi, a pick-up City, a station Panorama e a carrinha (furgão) Fiorino. No domínio da motorização, o 147 já não era equipado com o venerável Série 100 de 903cc, mas com o novo Fiassa de 1.049cc, desenvolvido propositadamente para uso neste modelo, contando o 147 graças a tal mudança, com um modesto aumento na potência de aproximadamente 45 para 50 cavalos.

Publicitado como “l’auto da Campagna”, o Fiat 127 Rustica apresentava várias diferenças do 147 regular que lhe servia de base. A suspensão fora reforçada, o cárter ganhou um protector e o tratamento aplicado ao chassis para evitar o aparecimento de ferrugem era mais rigoroso. Foram colocados grandes protectores metálicos sobre os faróis, piscas e farolins, sendo assentes em pára-choques tubulares também exclusivos a esta variante; para o tejadilho, podia ser adquirida uma espaçosa cremalheira de bagagem, a qual constituía o único extra disponível para este modelo. As jantes continuavam a ser as do 147 modelo base, mas surgiam pintadas de preto no Rustica e equipadas exclusivamente com pneus de inverno. Parafraseando a famosa citação de Henry Ford, o cliente poderia adquirir o 127 Rustica em qualquer cor que desejasse, desde que fosse bege semi-mate, sendo a tinta reportadamente originária de excedente militar. O interior definia-se como básico em todos os aspectos; manteve-se o tablier do 147, mas os bancos foram substituídos por versões mais leves, meras estruturas tubulares revestidas com material sintético que cobria uma quantidade escassa de acolchoamento.

O Rustica não figura, contudo, nas páginas da história automóvel italiana apenas por ser uma versão interessante de um modelo bem-amado, mas também pelas condições peculiares nas quais surgiu e foi produzido. No início da década de 70, a Lamborghini passava por dificuldades financeiras após uma série de decisões arriscadas, cujas consequências ameaçavam ditar o fim da companhia. Após as vendas do Urraco terem ficado aquém das expectativas e com a crise petrolífera de 1973 a afectar a comercialização do Countach, a Lamborghini apostou em força no desenvolvimento do todo-o-terreno Cheetah, com vista a um lucrativo contrato com o exército norte-americano para a eventual substituição do Jeep. A aposta falhou redondamente.

O Cheetah constituía a encarnação final de um conceito inicialmente desenvolvido na FMC Corporation designado XR311, o qual viria a ser essencialmente copiado na íntegra pelos seus próprios criadores. Estes tinham deixado a FMC para criar uma nova empresa, a designada Mobility Technology International (MTI), sendo a renovada versão do XR311 construída pela MTI, nos Estados Unidos e, seguidamente, enviada para a Lamborghini para ser terminada, sendo subsequentemente batizada “Cheetah”. A cópia do XR311 original era, no entanto, de tal modo evidente que a FMC processou a MTI e a Lamborghini, levando à dissolução do acordo entre as duas companhias e ao regresso do Cheetah aos Estados Unidos.

Contudo, este não seria o fim da história. A Lamborghini assegurara um empréstimo muito significativo por parte do governo italiano para ajudar a concretizar um novo contrato improvável, desta vez, com a BMW. A construtora alemã decidira colocar o seu revolucionário M1 em produção, recorrendo aos conhecimentos da Lamborghini no domínio dos exóticos de modo a assegurar que o desenvolvimento da sua nova joia da coroa seria bem-sucedido. A Lamborghini decide no entanto que, ao invés de honrar o acordo com a BMW, os fundos governamentais deveriam ser desviados para uma opção mais… criativa. Essencialmente, pegar em tudo o que a companhia aprendera na parceria com a MTI e desenvolver uma versão própria do Cheetah.

Dizer que este plano falhou seria um eufemismo. Uma compreensivelmente agravada BMW optou por literalmente assaltar a Lamborghini para reaver os seus protótipos, moldes e peças para o M1 e a construtora italiana acaba falida e sob controlo dos tribunais. A aventura da Lamborghini pelo universo dos todo-o-terreno não terminara e, eventualmente resultaria na produção do incrível LM002, mas essa altura ainda não chegara (aliás, demoraria vários anos a materializar-se) e, entretanto, era necessário manter a fábrica de Sant’Agata Bolognese a funcionar.

Giulio Alfieri, o brilhante engenheiro que trabalhara para a Maserati desde 1953, sendo o responsável pelo 35000GT e pelo Tipo 60/61 (“Birdcage”), juntara-se à Lamborghini em 1975. A saída de Alfieri da Maserati fora forçada por Alejandro de Tomaso após o argentino adquirir a companhia, aquisição à qual Giulio Alfieri fora um veemente opositor, frustrando com sucesso a primeira tentativa de de Tomaso em 1968. Perante a situação precária da Lamborghini em 1979, Alfieri avançou com uma ideia peculiar para colocar os 220 trabalhadores que se encontravam parados ou a operar apenas a tempo parcial, de volta na linha de montagem: pegar na versão brasileira do 127 e torná-la mais dura e austera, criando um modelo exclusivo para o mercado italiano cuja construção manteria a Lamborghini à tona por algum tempo. Nascera então o conceito do Rustica, o qual foi seguidamente executado pela Lamborghini, a par do Countach, por dois anos. Graças ao pequeno Fiat, a Lamborghini manteve-se à tona, sobrevivendo à crise e florescendo.

No Brasil, o 147 permaneceu em produção até 1987 e, na Argentina, o modelo sobreviveu até 1996, 26 anos depois do lançamento do primeiro Fiat 127. Quanto ao Rustica, não é conhecido o número exato de sobreviventes na atualidade, mas o modelo é raro e admirado pelos entusiastas do 127 e 147 assegurando, felizmente, que os Rustica que ainda marcam presença na estrada desfrutam, usualmente, de boa atenção.

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