Arquivos • 11 Dez 2021
Longos anos se passaram até que os cavalos passassem definitivamente de meio de transporte a unidade de potência. Nesse intervalo, a hegemonia da tracção animal foi constantemente desafiada pelas sociedades cada vez mais industriais e cosmopolitas. Uma das alternativas mais promissoras no último quartel dos século XIX foi a tracção eléctrica. Numa época em que o automóvel dava os seus primeiros passos, estes não passavam de rudes adaptações de carroças e charretes anteriormente puxadas por animais, agora propulsionadas mecanicamente.
Os então designados «automóveis eléctricos» eram uma grande novidade na época, e o seu desenvolvimento levou um avanço considerável quando comparamos com o desenvolvimento dos automóveis de combustão interna. A designação de combustão interna nunca tomou maior importância, na medida em que quem liderava o mercado automóvel americano no virar do século XIX eram precisamente os de combustão externa. Estes últimos baseavam-se numa tecnologia com provas de fiabilidade e robustez difíceis de superar. O uso da combustão permitia a produção de vapor em ordem de fazer accionar pistões, e consequentemente o veículo. Falando em números concretos dos EUA, em 1900 circulavam 38% de carros eléctricos, 40% a vapor e por último, 22% de combustão interna (gasolina, gás etc).
O veículo eléctrico tinha muitas vantagens, e muitas delas motivaram o seu desenvolvimento e aprimoramento quase instantâneo. Um motor a gasolina da altura tinha cerca de 400 partes móveis, que necessitavam de lubrificação, que estavam expostas a desgaste, e que poderiam simplesmente avariar. Em contrapartida, um motor eléctrico tinha apenas uma, o rotor, e facilmente durava mais de uma década sem avariar. Toda a facilidade de uso pendia para os argumentos de um automóvel eléctrico, sendo este cómodo, fácil e intuitivo. O automóvel eléctrico foi durante cerca de duas décadas a escolha de eleição. Por um lado, as cidades acolhiam com agrado um veículo capaz de substituir os animais, maioritariamente cavalos, que deixavam naturalmente as ruas repletas de dejectos e maus odores. Por outro, o automóvel eléctrico era uma vantagem enorme em conforto de uso, na medida em que dispensava o uso óleos, era silencioso e suave.
O seu concorrente a gasolina, era barulhento, precisava de arranque manual (à manivela), largava óleos e era ainda limitado por caixas de velocidade primitivas não sincronizadas que afectavam a suavidade da viagem. Tudo isto era ainda acrescido de uma baixa produção de combustível que ditava a sua escassez na América, e ainda pela baixa fiabilidade deste motor que ainda nos dias hoje, volvido mais de um século continua em constante evolução.
Os veículos eléctricos do virar do século correspondiam às necessidades das esposas com os modelos de dois lugares, dos seus maridos com modelos mais luxuosos como o Studebaker Model L e ainda às necessidade dos pequenos e grandes comerciantes com os seus modelos de furgões e camiões de mercadorias. Estes últimos, os veículos comerciais viram a ser, com altos e baixos, o esplendor latente da tracção eléctrica durante décadas de letargia.
Grandes empreendimentos, como a ECV – Electric Vehicle Company -, usaram e abusaram de todas as potencialidades destes automóveis, quando testaram ao limite os seus táxis eléctricos em grandes centros cosmopolitas. Um elaborado sistema de organização permitia uma disponibilidade de baterias sempre carregadas e prontas a montar, permitindo um uso quase ininterrupto do táxi.
Falar de automóveis eléctricos e não falar de baterias é impensável. Um pouco como falar de Aquiles sem comentar o seu famoso calcanhar. As baterias sofreram uma evolução exponencial quando em 1882, foram produzidas em massa as primeiras baterias recarregáveis. Esta foi possivelmente o primeiro pontapé de partida que possibilitou a arquitectura de um automóvel eléctrico. Durante grande parte dos anos áureos da electricidade sobre rodas dominaram as baterias de chumbo-acido. Constantes evoluções permitiram diminuir substancialmente o seu tamanho, no entanto, uma bateria vulgar pesaria na ordem dos 200 quilogramas.
Um dos grandes nomes da história, Tomas Edison, foi pioneiro na investigação e desenvolvimento das baterias de níquel-ferro, e até se juntou numa aventura com o seu bom amigo Henry Ford para o desenvolvimento de um veículo eléctrico barato e acessível às massas. Pelo anos de 1910 a concepção social seria o uso de veículos eléctricos nas cidades, e de combustão para viagens de maior distância. Não estariam longe da realidade utópica que implicaria a maioria das famílias terem dois veículos. O preço dos automóveis era, no entanto, proibitório para a esmagadora maioria das pessoas, factor apenas mitigado pela campanha brilhante de Ford contra os preços, que permitiu tornar o seu Model T uma realidade constante e acessível na sociedade americana, e mundial.
Em 1917, a Steinmetz Electric Motor Car Corporation fez uma tentativa ousada de destronar o Model T como carro acessível, mas eléctrico. Nesta altura, o Model T tinha 9 anos de produção, e o seu preço tinha caído estavelmente para os 360$ enquanto esta proposta eléctrica mais acessível rondava uns 985$, o que era um feito incrível, dado que o marcado eléctrico consideravelmente mais caro e francamente elitista.
Um facto curioso remete-nos para a ideia constante no tempo de que uma revolução nas baterias estará ao virar da esquina. Atentando à literatura e imprensa da especialidade, desde há um século que a revolução das baterias é como um Dom Sebastião numa manhã de nevoeiro, trazendo a autonomia que vai elevar o automóvel eléctrico ao seu merecido pedestal.
Para um jovem engenheiro automóvel nascido em 1875, a solução não passava pelo eléctrico unicamente, e cedo iniciou trabalhos no que hoje é conhecido como o híbrido. Ferdinand Porsche foi pioneiro em instalar motores eléctricos directamente nas rodas, a aplicar regeneradores de energia, e entre outras, a conceber em parceria com Ludwig Lohner os primeiros automóveis híbridos. Esta noção de híbrido é questionável aos dias de hoje, na medida em que um motor convencional era acoplado a um gerador, e permitia, esgotada a capacidade eléctrica do automóvel, retomar a marcha com o fluxo constante de corrente vinda do gerador. Deste modo, este engenho muito elaborado permitia circular muito mais tempo que um eléctrico, e valeu-lhe o baptismo de Semper Vivus, sendo que dada a origem latina do termo, não considero necessário traduzir.
Este automóvel era tudo menos simples, custando uma fortuna, e tendo como o seu passageiro mais importante, o arquiduque da Áustria Franz Ferdinand, posteriormente assassinado em Serajevo, com consequências desastrosas para a Europa. Foi o próprio Ferdinand Porsche que conduziu sua excelência, numa demonstração das capacidades deste automóvel, durante manobras do exército.
Porsche viria a aperfeiçoar sem grande visibilidade o seu conhecimento sobre estes sistemas híbridos, sendo uma das suas mais famosas tentativas de implementação, foi o seu protótipo destinado a responder ao concurso de produção do famoso Panzerkampfwagen VI, mais conhecido por Tiger. A quantidade colossal de cobre necessária para dotar estes magníficos felinos de metal foi sempre dissuasora numa perspectiva económica, pese embora as suas vantagens teóricas.
Quando pensamos em clássicos, dificilmente nos vem um eléctrico à cabeça. Nem tão pouco conseguimos identificar com facilidade a sua presença em museus e/ou exposições. Por este mundo fora ainda se encontram poucos destes delicados automóveis, dificilmente com as baterias de origem. Vários factores contribuíram para o declínio do automóvel eléctrico, o que os torna clássicos raros e exóticos. A invenção do motor de arranque em 1912 e a democratização do acesso ao Model T, foram certamente os pregos finais no caixão figurativo do automóvel eléctrico ligeiro.
Dedico este parágrafo final a uma reflexão curiosa sobre os altos e baixos da tracção eléctrica. Aquando da sua invenção, ouve um forte interesse em promover os automóveis eléctricos com vista em libertar as cidade dos excrementos animais e odores que infestavam as grandes ruas e avenidas dominadas pela tracção animal. Após o seu apogeu na primeira décadas do séc. XX, apenas a escassez de combustível motivada por guerras bélicas e políticas, guerras mundiais e crises no Médio Oriente respectivamente, permitiram uma mudança ligeira no status quo a favor dos automóveis eléctricos.
Com a poluição das cidades em níveis históricos e o aquecimento global a aumentar, foram feitos esforços Pírricos no sentido de apresentar o eléctrico como a única alternativa. Um primeiro EV-1 de General Motors aparentava ser uma vitoria rápida. Quase em jeito deste se tornar pela lei um clássico, ou veículo de interesse histórico, o puramente eléctrico deu lugar aos híbridos e aos plug-in na procura pela solução perfeita para o uso da electricidade na sua melhor extensão. A pergunta evidente a fazer será: daqui a 100 anos, veremos mais carros eléctricos nos museus e nas colecções privadas?