Clássicos • 19 Jan 2023

Para quem não sabe, a Renault na Roménia chama-se Dacia. Não tanto com os modelos que tem agora (Duster, Sandero e outros), baratos e com qualidade, mas com uma história no país antiga, e que deu aos romenos a oportunidade de ter um automóvel na sua garagem.
A história dessa colaboração começa na década de 60, mais concretamente em 1966. A marca – cujo nome foi inspirado à área da Roménia sob ocupação romana, entre os séculos I e III da nossa era – ajuda a construir uma fábrica em Pitesti, no centro do país, e adquire as ferramentas e alguns planos à Renault, comelando a fabricar alguns modelos sob licença. Primeiro o 1100, baseado no Renault 8, mas a partir de 1968 fabricam o 1300, baseado no Renault 12.
O modelo teve vida longa, e nas suas diversas variantes, durou até 2004, com cerca de dois milhões de unidades produzidas. Foi quase o seu modelo único, com uma excepção: o modelo 2000, feito nos primeiros anos da década de 80, que basicamente era um modelo Renault 20, fabricado em algumas centenas de unidades. A Dacia chegou até a mostrar um modelo baseado no Renault 18, mas nessa altura o contrato com a Renault expirou e ambas as marcas foram cada um para o seu lado, até 1999, quando a casa-mãe francesa comprou a marca romena para a transformar na sua marca “low-cost”, com considerável sucesso.
Mas recuemos à década de 80 e ao modelo 2000: nesses dias, a Roménia estava do outro lado da Cortina de Ferro, e esses 2000 serviam para a elite do Partido Comunista e para a polícia secreta, a Securitate, ter um veículo potente e prestigiante. E um desses raros modelos, matricula B 101 TOV, foi entregue a uma pessoa em particular: Nicolae Ceausescu, o Conducator. Aqui entra a história de um dos ditadores mais exuberantes que o outro lado da Cortina de Ferro alguma vez teve.
Em primeirolugar, porém, o automóvel: anda bem – velocidade máxima, 175 km/hora – tem 115 cavalos, motor de 2.2 litros, e o seu dono actual, Ovidiu Magureanu, tem uma história para contar, concretamente acerca de como ele se tornou o seu dono. Descobri esta história num artigo de 2014, e espero que ele ainda seja o dono deste exemplar.
“Quando eu era criança, frequentava a garagem do meu vizinho, e foi assim que ganhei a minha paixão por carros. Ele era o motorista pessoal de Nicolae Ceausescu. Primeiro guiei o Dacia 1300 dos meus pais, depois comprei o meu. Encontrei o carro do Ceausescu na internet, nem conseguia acreditar. Então é claro que o comprei”, explicou Magureanu, numa entrevista ao jornal romeno Adevarul.
O automóvel azul está – aparentemente – bem conservado. O seu interior é bege, com o painel de instrumentos plastificado e negro. Tem transmissão automática, ar condicionado, cruise control, vidros eléctricos, jantes de liga leve, e como presumimos que tudo isto seja original, poderemos afirmar que tal, na Roménia, era o equivalente a um disco voador. Ou se preferirem, era o exemplar de alguém que vivia no seu casulo.
E aqui entra a História.
Quando o automóvel foi feito, em 1981, a Roménia estava em sarilhos. Com uma dívida externa enorme, Ceausescu decidiu tomar uma decisão radical: pagá-la a todo o custo. Toda a produção industrial e agrícola foi assim direccionada para a exportação, e pouco ou nada sobrou para uma população em expansão – cerca de 20 milhões de habitantes nessa década. Para piorar as coisas, Ceausescu estava a remodelar o centro da sua capital, Bucareste, e entre outras coisas, construía o Palácio do Povo – hoje em dia, o segundo maior edifício do mundo em termos de área – e por causa disso, o povo passava misérias. Nada que não se soubesse para quem via as imagens dessa Cortina de Ferro, desde a Polónia à União Soviética.
E quando a Cortina de Ferro caiu, ao longo do ano de 1989, as coisas na Roménia foram deixadas para o fim. Quem recorda a História, notará a violência do processo. Se em Belim-Leste se cantava “nós somos o povo” e um equívoco numa conferência de imprensa deu lugar ao derrube do Muro, na Roménia, quando o povo protestou, primeiro em Timisoara, depois no resto do país, a polícia, o exército e a Securitate responderam a tiro. As coisas caminhavam progressivamente para a guerra civil quando, a 21 de Dezembro de 1989, Ceausescu foi à varanda do seu palácio para falar com o povo.
Julgando que estaria domado pelo exército e pela polícia secreta, começou o seu discurso, mas alguns minutos depois, este assobiou-o de tal maneira que os seguranças tiveram de o arrastar dali, temendo o pior. E a televisão, que transmitia o comício em direto, teve de interromper sem dar qualquer explicação. Quanto soube dessa hostilidade, ele ordenou que atirassem a matar, mas o exército, que sabia a direcção do vento, recusou.
O resto é conhecido: Ceausescu fugiu de Bucareste e posteriormente o povo entrou dentro das suas instalações e encontraram o luxo em que vivia com a sua mulher, Elena. Ambos foram capturados a 25 de Dezembro, dia de Natal, julgados um tribunal militar, condenados à morte e fuzilados, em imagens que correram mundo.
Chegados ao fim, o que aqui releva é o automóvel que um dos ditadores mais marcantes da segunda metade do século XX usava para as suas deslocações. E assim concluímos que, quanto mais moderno e mais luxuoso é, mais distanciado do povo os ditadores se encontram.