Competição • 30 Nov 2019
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Roland Ratzenberger: O piloto que viveu o seu sonho
Chegar à Fórmula 1 aos 33 anos é raro: o normal é sair da F1 nessa idade. É assim agora. Mas há 30 anos, também era anormal chegar ali como piloto experiente, ainda por cima, alguém que trocou uma carreira na Endurance e nos Turismos, em equipas de fábrica, só pelo sonho de partilhar a grelha de partida com alguns dos melhores pilotos do pelotão internacional.
Por incrível que pareça, houve um piloto que fez isso em 1994. Infelizmente, não teve tempo para saborear esse sonho. O seu nome: Roland Ratzenberger.
Competitivo e Detalhado
Nascido a 4 de Julho de 1960 em Salzburgo, Roland Walter Ratzenberger cedo ficou atraído pelo bichinho do automobilismo, especialmente depois da inauguração da pista de Salzburgring, em 1969. Conheceu Walter Lechner, conhecido preparador de automóveis local, e depois de ter acabado o ensino técnico, aos 18 anos, e sabendo que os seus pais não eram ricos, trabalhou como mecânico e instrutor, para poder pagar um curso de pilotagem na Alemanha. Conhecido por ser detalhado na preparação dos seus automóveis, acabou por entrar na Fórmula Ford em 1983, ganhando os campeonatos da Áustria e da Alemanha, o suficiente para ir ao Fórmula Ford Festival, em Brands Hatch, onde acabou em segundo em 1985, antes de ser o vencedor da edição de 1986.
Ratzenberger foi para a Fórmula 3 britânica no ano seguinte, mas antes disso, começou a dar nas vistas por ter o nome de um… rato. É que na televisão britânica, ele tinha o mesmo nome da personagem Roland Rat, num programa da Tv-Am, chegando a ir até uma edição do programa, desafiado pela personagem para uma corrida. Acabou por perder!
Apesar desse reconhecimento, não teve uma grande passagem. Em duas temporadas, os resultados foram modestos. Melhor foi a sua passagem pelo Mundial de Turismos, onde foi piloto da Schnitzer, num BMW M3. Em 1989, foi para a Fórmula 3000 britânica, pela Spirit Motorsport, acabando na terceira posição. Nesse mesmo ano, participou nas suas primeiras 24 Horas de Le Mans, pela Brun, ao lado de Walter Lechner, o seu instrutor no início na sua carreira, mas não terminou a prova.
Em 1990, ruma ao Japão, onde corre no campeonato de Endurance, acabando como piloto oficial da Toyota Team SARD, ao mesmo tempo que corria na Fórmula 3000 local. Aos poucos, começa a ganhar nome e tracção em ambos os campeonatos, conseguindo bons resultados. Pelo meio, até ruma aos Estados Unidos, para testar automóveis da CART, pela Dick Simon Racing, mas nunca achou a América sedutora para ele. Ganha uma corrida em 1992, em Suzuka, e em Le Mans, ao lado de Eddie Irvine e do sueco Eje Elgh, conseguem o segundo lugar na classe C2. Pelo meio, tinha vencido também os 1000 km de Fuji e de Suzuka.
Em 1993, quando regressaram a França, para mais uma edição das 24 horas de Le Mans, no Toyota da SARD, ganhariam a classe, ao lado de Mauro Martini e Naomi Nagasaka.
O Sonho da Fórmula 1
No final de 1993, aos 33 anos tinha um bom emprego numa equipa de fábrica na Endurance, a Toyota. Tinha fama, num tempo onde os japoneses pagavam bem. O seu nome era bem conhecido ao lado de gaijins (estrangeiros) como Mika Salo, Heinz-Harald Frentzen, Eddie Irvine, Mauro Martini e Jeff Krosnoff, que infelizmente morreria em 1996 num acidente na CART americana, na pista de Toronto.
Contudo, o Japão nessa altura estava numa crise que arrasou a economia local, e o sonho da Fórmula 1, que nunca se tinha apagado, reavivou-se, especialmente depois dos sucessos de alguns dos pilotos com quem tinha competido – como Irvine e Johnny Herbert – na categoria máxima do automobilismo. Quando soube da inscrição de uma nova equipa, a Simtek, regressa à Europa e tenta a sua sorte. Ele acaba por ser escolhido – aparentemente, depois de ter dado a Nick Wirth o susto da sua vida num Ford Fiesta… – mas o seu estatuto é o de piloto pagante. E para isso, investiu quase tudo das suas poupanças. Chegou a vender uma casa e os seus bens mais preciosos, incluindo o seu Porsche 911 negro e o Carocha amarelo que tinha desde os seus tempos de juventude.
Também nessa altura, no Mónaco, conheceu Barbara Belhau, empresária de futebolistas, e dona de uma colecção de arte, convencendo-a a arranjar patrocinadores para ele e para a equipa. É que tinha arranjado dinheiro para… cinco corridas. Behlau investiu então do seu próprio bolso para ajudar Ratzenberger – com o nome dela no flanco do carro.
Quando foi anunciado, ele sabia que tinha alcançado o seu sonho. Mas este poderia ter acontecido três anos antes, em 1991, quando, ainda no Japão, soube da Jordan, que acabara de montar a sua equipa, e o seu chassis tinha o potencial de ser competitivo. Ratzenberger tinha um patrocinador importante, e ele acedeu em colocar um adesivo no carro dele. Contudo, quando tudo se aprontava para a assinatura de um contrato e o seu anúncio como piloto, ao lado de Andrea de Cesaris, o patrocinador deu o dito por não dito, e o lugar ficou nas mãos do belga Bertrand Gachot.
Estava assim a concretizar o sonho último. Contudo, quando no final de Março, a Simtek embarcou no Brasil, só tinha um bólide montado para David Brabham. O do piloto austríaco estava ainda… em peças. Perderam tempo precioso a montá-lo, e quando ele pôde dar algumas voltas, os seus tempos eram lentos e a sua cabeça ainda era o de um piloto de Endurance. Resultado: uma não-qualificação.
A Simtek disse-lhe que a culpa era deles e deu-lhe, em compensação, uma sexta corrida para poder mostrar serviço. E até calhou bem: em pouco tempo, o seu charme foi o suficiente para se tornar uma personagem querida de todos na equipa.
Na corrida seguinte, em Aida, queria mostrar serviço, pois era dos poucos pilotos que conheciam a pista. Conseguiu a qualificação, na última posição, e acabou a corrida no 11º e (último) lugar, a cinco voltas do vencedor. Uma vitória pessoal, de uma certa forma.
Uma das muitas, também: a sua relação com o pai, que nunca foi serena, tinha melhorado bastante naqueles dias de Primavera, e tinha decidido comprar uma casa na sua cidade natal. Até tinha arranjado um Porsche 911 negro, cuja primeira viagem fez com J.J. Letho. O destino? Imola, para o GP de San Marino, a terceira corrida da temporada e a primeira em solo europeu.
O Fim em Tragédia
Ratzenberger ainda se adaptava ao carro e o seu estilo de condução ao do monolugar de F1. Mas os tempos melhoravam, ao ponto de passar calmamente o desafio de se qualificar. O seu tempo ficou perto do de David Brabham, seu companheiro de equipa, mostrando que se sentia cada vez melhor, especialmente quando resolveu a questão dos travões, que o atormentava.
Também existia uma novidade em Imola: um patrocinador estava presente, e ele tinha de mostrar serviço, porque poderia injectar mais dinheiro e ficar por lá mais algumas corridas. Marcou um tempo, mas por duas vezes saiu de pista, por andar no limite do carro. A primeira foi na Tosa, a segunda, na Acqua Minerale. Ali, a asa da frente ficou rachada, e em vez de ir às boxes para verificar se estava tudo bem, decidiu tentar a sua sorte numa nova volta mais rápida.
Quando acelerava entre a Tamburello e a curva Villeneuve, a asa cedeu e ele foi em frente, batendo com violência. O carro arrastou-se até à Tosa, onde se imobilizou. Mais tarde, o impacto do acidente foi medido em 500 G’s, o mais forte de sempre na Fórmula 1.
Cedo se viu que ele não ia sobreviver. Transportado para o hospital Maggiore, em Bolonha, Ratzenberger foi declarado morto uma hora depois de ter chegado. Tinha 33 anos.
O tempo aguentou-se o suficiente para a 26ª e última posição da grelha, e a Simtek tinha um dilema: correr ou não correr. Sendo um piloto querido na equipa, estes decidiram que iriam correr no domingo, em nome dele. Num comunicado oficial, David Brabham homenageou o companheiro morto:
“Perdi um amigo próximo ontem. Apesar de sermos companheiros de equipa há apenas algumas semanas, já nos divertíamos muito juntos e tínhamos todos os motivos para esperar um óptimo ano com a Simtek. Estou confiante de que a maior homenagem que podemos prestar a Roland é correr hoje, daí a minha decisão.”
No relatório da autópsia, foi decretado que ele sofrera três ferimentos fatais: uma fractura na base do crânio, uma ruptura na aorta, e um traumatismo craniofacial por causa de um pneu que atingira o seu capacete. O lugar foi deixado vago, e mesmo o piloto que poderia ter ficado com o lugar, o francês Paul Belmondo, da Pacific, declinou o convite.
Alguns dias depois, enquanto o mundo se preparava para assistir às exéquias de Ayrton Senna, cinco pilotos estavam em Salzburgo para se despedirem do seu amigo. Eram alguns dos que estiveram no Japão, como Herbert, Irvine e Frentzen, o seu companheiro, David Brabham, e os seus compatriotas, Karl Wendlinger e Gerhard Berger. E sobretudo, quem também foi ao funeral fora Max Mosley, então presidente da FIA. Anos depois, afirmou:
“Roland tinha sido esquecido. Então, decidi ir ao dele, em vez de ir ao de Senna. Eu pensei que seria importante alguém ir a uma manifestação destas.”
Por causa de Ratzenberger, os pilotos decidiram reavivar o Grand Prix Drivers Association (GPDA), que estava adormecida desde 1982. Foi logo no dia a seguir ao seu acidente fatal, graças aos esforços de Ayrton Senna com os pilotos que lá se encontravam. Foi o seu último esforço antes de entrar no carro para a corrida.
Com o tempo, a segurança avançou o suficiente para que 10 anos depois se tornasse obrigatório o HANS – Head and Neck Suport – concebido para minorar o impacto dos pilotos em acidentes, especialmente na área do pescoço e da cabeça.
Ratzenberger era para ter competido nas 24 Horas de Le Mans desse ano, em Junho, ao lado de Mauro Martini e Jerry Krosnoff. No seu lugar foi Eddie Irvine, que levaram o Toyota até ao segundo lugar. E chegaram a liderar por algum tempo, até terem problemas na caixa de velocidades.
O austríaco está sepultado no jazigo de familia, na cidade onde nasceu. Na sua tumba, ao lado de uma miniatura do seu capacete, está a seguinte frase eterna:
“Viveu pelo seu sonho”.