O susto

Arquivos 28 Abr 2024

O susto

Por José Correia Guedes

Aeroporto Municipal de Vero Beach, Florida, 2 de Maio de 1972. Era uma manhã de primavera mas chovia, ainda que com pouca intensidade. Tinha sido “largado” há poucos dias e por isso a minha experiência como piloto era muito reduzida. Teria, no máximo, umas dezassete ou dezoito horas de voo, a fase em que todos nós achamos que já sabemos tanto como o Lindbergh ou o Red Baron.

 

Era a terceira ou quarta vez que voava sozinho e a minha missão para esse dia consistia em treinar aterragens e descolagens durante uma hora e pouco. As famosas “voltas de pista”. O avião era um Piper Cherokee 140 com matrícula N98245, curiosamente o mesmo em que fizera o meu primeiro voo, dessa vez ainda com instrutor ao lado. Tal como a primeira namorada ou o primeiro beijo, o primeiro avião também nunca se esquece. Falta acrescentar que este Cherokee tinha acabado de fazer uma revisão, o que nem sempre é boa notícia.

 

Como já disse, o dia estava chuvoso e isso acrescentava alguma emoção ao programa pois era a primeira vez que enfrentava tal situação, ainda por cima sozinho. Who cares, pensava eu do alto da minha recém adquirida auto confiança aeronáutica. Alinhei o avião na pista e depois de autorizado acelerei o motor e fui à vida. Instantes depois o pequeno Cherokee ganhou velocidade, levantou voo e começou rapidamente a ganhar altitude. Só que … Só que de repente fez-se um silêncio aterrador. Que se passa? Que é isto? What the f… !!!

 

Eu nem queria acreditar no que tinha acontecido: o motor, o único motor do meu avião, tinha deixado de trabalhar. Assim, sem mais nem menos. Era preciso pensar depressa e fazer qualquer coisa. Rezar? Não havia tempo. Resisti à tentação de voltar para trás e isso ter-me-á salvo a vida. Olhei para baixo, vi que ainda havia um pedaço de pista sob o avião e decidi mergulhar que nem um Stuka em direcção à mesma. Estendi os flaps, agarrei-me ao compensador (trim) e deixei a velocidade crescer para não entrar em perda. Por razões que ainda hoje não sei explicar lá consegui pousar o avião no fim da pista, a poucos metros das “ervas”, sem quaisquer danos para aparelho e piloto. Milagre, podem crer. Mas foi então que começou a minha maior angústia: que disparate teria eu feito para que o motor deixasse de trabalhar? Lá se ia o meu sonho de ser piloto, ia seguramente ser recambiado para Portugal.

 

Como chovia e o motor não funcionava tive que aguardar que alguém me fosse buscar ao fim da pista. Foi então que as pernas começaram a tremer. Sim, como viria a aprender ao longo da carreira o medo só se instala depois dos problemas resolvidos. Durante as crises não há tempo para pensar em nada senão na forma de as resolver. Mas mais que medo da morte (ninguém pensa nisso aos 24 anos) eu tinha mas é medo de chumbar no curso.

 

Minutos depois chegou o carro da manutenção da Flight Safety e dele saíram dois mecânicos que foram directos ao capot do motor. Nem para mim olharam. Mas logo depois reparei que se olhavam mutuamente e que um deles tinha qualquer coisa na mão. O mecânico mais velho dirigiu-se então a mim e disse qualquer coisa como: “congratulations, you did a great job”. Estava salvo. Mas que foi que aconteceu? Não disseram.

 

Levaram-me então ao director da escola, mister Narigan, e contaram o sucedido mas sem grandes detalhes. Fiquei com a impressão que tinha havido um problema com o cabo da mistura, eventualmente mal montado durante o processo de revisão, mas nunca ninguém admitiu a falha. O director Narigan passou-me uma carta de recomendação (para a TAP) a dizer que eu “tinha as características de um bom piloto profissional” e fez de conta que nada de grave tinha acontecido com o Cherokee. Pudera. E se eu tivesse morrido? Lá ia a escola à falência por grosseira irresponsabilidade, que aquilo na América fia fino quando toca a seguros e indemnizações.

 

Tudo bem, eu não queria nem saber. O que queria é que me dessem outro avião para ir voar de seguida, caso contrário o medo instalava-se e nunca mais seria piloto de coisa nenhuma. Voei durante uma hora durante a tarde mas aí já com um rasgado sorriso nos lábios: depois do que o Mr Narigan escreveu (documento que ainda guardo) ninguém conseguiria impedir-me de vir a ser piloto da TAP. E assim foi.

 

Ah, e aprendi outra coisa. Este pequeno Cherokee tinha vindo de uma paragem prolongada depois de ter passado por um programa de manutenção periódica. A partir daí de cada vez que recebia um avião vindo de uma revisão geral preparava-me sempre para uma surpresa desagradável; na maior parte das vezes a realidade deu-me razão.

 

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