Competição • 17 Mai 2018
Grande Prémio do Mónaco Histórico junta 19 Maserati clássicos
Quem assistiu ao filme Ferrari, recordar-se-á de uma cena no teatro de Modena, onde perguntam sobre Alfredo Orsi – o então director desportivo da Maserati – e a que respondem com algo parecido como “pediu um novo empréstimo, tem mais seis meses de existência”, reforçando a necessidade de triunfar nas Mille Miglia, como se fosse a linha vital para a continuidade da marca no automobilismo. Era igualmente um sinal de como as marcas italianas – Ferrari, Maserati, Lancia – negligenciavam a produção automóvel em favor das competições, em meados da década de 50.
Quem conhece a história do automobilismo, porém, sabe que essa frase é verdadeira. A Maserati, apesar de ter vencido o mundial de pilotos daquele ano, com Juan Manuel Fangio ao volante, em 1958 já não existia como equipa, porque tinha iniciado um processo de falência. E como no caso da Ferrari, precisava de ganhar corridas e campeonatos para continuar. No entanto, o desastre de uma prova, num país exótico para o automobilismo, e numa altura em que o regime estava na corda bamba, precipitou tudo isso.
Se os americanos falam do “win on Sunday, sell on Monday” (ganha no Domimgo, vende na Segunda), para a equipa do Tridente, perder no domingo significou pedir falência na terça-feira.
A montra dos ditadores
Neste parágrafo, um pouco de Geografia, História, Relações Públicas e Política. Depois da Segunda Guerra Mundial, a América do Sul tornou-se num dos lugares onde o automobilismo ajudou teve um papel preponderante, depois da destruição das cidades europeias. A Argentina, com as suas corridas, primeiro as que ligavam cidades a cidades, e depois as de circuito, especialmente em Buenos Aires, ajudaram a mostrar-se contra a concorrência europeia e revelaram ao mundo gente como Juan Manuel Fangio, “El Chueco”, José Froilan Gonzalez, “O Touro das Pampas”, ou Onofre Marimon, outro talento argentino, precocemente desaparecido no Nürburgring Nordschleife, em 1954.
Contudo, outros lugares também recebiam o automobilismo mundial. O Brasil teve o Circuito da Gávea, no Rio de Janeiro, especialmente no período antes da Segunda Guerra, mas nos anos 50 duas nações erguiam-se para receber a fina flor do automobilismo internacional. A primeira foi Cuba, que em 1957 e 1958 recebeu os melhores pilotos do mundo num circuito desenhado nas ruas de Havana, o que teve um final atribulado, com o rapto de Fangio pelos rebeldes da Sierra Maestra. E claro, mostrou ao mundo que política e automobilismo andavam de mãos dadas, como manifestação de relações públicas.
O segundo país foi a Venezuela. Entre 1955 e 1957, pilotos como Stirling Moss, Phil Hill, Jean Behra, Peter Collins, correndo em carros como Mercedes-Benz, Porsche, Maserati, Gordini, entre outros, e correndo contra alguns pilotos locais, correram num lugar chamado Los Proceres, no centro de Caracas, onde quando os bólidos velozes não corriam por ali, havia… desfiles militares.
Nenhum destes países era uma democracia. Todos os ditadores adoravam automobilismo, e o ditador da Venezuela, Marcos Perez Jimenez, não era excepção. Tinha um Mercedes-Benz 300 SL na garagem e só por uma ocasião deixou que alguém o guiasse. Foi… Juan Manuel Fangio, precisamente.
Perez Jimenez, como Juan Peron na Argentina, e Fulgêncio Batista em Cuba, sabiam que o automobilismo seria uma bela montra internacional, uma operação de relações públicas, para mostrar ao mundo as belezas do país e das suas gentes. Mas no final de 1957, ele tinha outro motivo: o seu lugar como presidente estava em perigo. O país era um barril de pólvora, até o exército hesitava em o apoiar.
E foi nesse contexto que a 11 de Novembro de 1957 aconteceria o III GP da Venezuela, corrida a contar para o Mundial de Sportscars.
“Pesadelo Surrealista”
Quem já ali tinha corrido não era fã do circuito. Tinha 9930 metros, com longas rectas, e as curvas eram feitas à volta dos monumentos que estão nas pontas dessa larga avenida, um pouco à semelhança do circuito de Avus, em Berlim. Os pilotos mais rápidos conseguiam fazê-lo em menos de quatro minutos. A superfície desse circuito era de cimento e betão, e ao contrário do asfalto, era complicado de dirigir para alguns pilotos, por causa da sua pouca aderência. Phil Hill, piloto da Ferrari nesses tempos, afirmava que conduzir ali era um “pesadelo surrealista”.
A corrida desse ano iria ter 101 voltas, num total de 1003 quilómetros. Os carros iriam partir ao estilo Le Mans – partindo na diagonal, com os pilotos a correrem do outro lado da pista rumo aos seus bólides.
Em 1957, a corrida, como já afirmei antes, iria fazer parte do Mundial de Sportscars. Esta era no entanto uma medida de desespero, porque a corrida sempre dera prejuízo para a entidade organizadora, o Touring Club Automovil de Venezulela. No primeiro ano, acabou com um prejuízo de cem mil dólares, e o governo não gostava nada de abrir os cordões à bolsa.
Em suma, todos por ali andavam na corda bamba.
A Maserati trouxe os seus modelos 300S e 450S para a competição venezuelana, que iriam ser guiados por pilotos como Stirling Moss, Juan Manuel Fangio, o francês Jean Behra, o sueco Jo Bonnier, bem como os americanos Harry Schell e Masten Gregory, num automóvel inscrito pela privada Temple Buell. A Ferrari e a Porsche iriam fazer companhia à Maserati que, não só não tinham conseguido ganhar as Mille Miglia, como também não conseguiram triunfar em Le Mans, ganha pelos Jaguar.
Crónica de um desastre
Menos de uma hora antes da corrida, o inesperado: Perez Jimenez quis cumprimentar os pilotos um a um. Este evento não pleaneado atrasou tudo em algum tempo e colocou toda a gente ainda mais nervosa como estava, a começar pelos organizadores.
Na partida, os Maserati ficaram parados, enquanto os Ferrari foram para a frente, mas quem liderava era o Corvette inscrito por Dick Thompson, com os Cavallinos Rampantes logo atrás, aguardando a sua oportunidade. Pouco depois, o Maserati da Temple Buell, guiado por Masten Gregory, passou-os a todos e ficava com a liderança. Outro 450S, guiado por Behra, era terceiro, atrás do Ferrari de Hawthorn e Collins.
Mas os sarilhos começaram cedo para os Maserati. Gregory desistia, com o carro da Temple Buell, mas entretanto, Moss recupera o tempo perdido – passou 22 carros numa só volta! – e apanha não só os da frente, como os passa, ficando com a liderança. Aqui, a Maserati tinha tudo controlado: Moss em primeiro, Behra em segundo, e o 300S de Jo Bonnier em terceiro, passando até o Ferrari dos britânicos.
Contudo, na 32ª passagem pela meta, o desastre. Moss apanhava o AC Ace de Joseph Hap Dressel quando este virou para a direita para o deixar passar. Contudo, ambos desentenderam-se e bateram forte. O AC ficou cortado ao meio, por causa de um poste de iluminação, e Dressell safou-se por pouco. O carro de Moss tinha a frente toda destruída e atrasava-se sobremaneira.
Quatro voltas mais tarde, Behra leva o seu carro para as boxes, no sentido de o reabastecer. Contudo, quando o procedimento acabou e a equipa assinalou ao francês para partir… uma bola de fogo surgiu do carro, obrigando ele e um dos mecânicos, Guerino Bertocchi, a escaparem pela vida, com chamas no seu corpo. Os bombeiros apagaram logo as chamas, e ambos foram transportados para o hospital, com queimaduras graves no caso de Bertocchi.
Nello Ungolini decidiu que Moss, nas boxes e ainda a recuperar do acidente, fosse guiar o carro de Behra, que estava chamuscado, mas intacto. Contudo, uma volta depois, Moss regressou porque o assento ainda estava a arder… e ele também! Apagadas as chamas, foi a vez de Harry Schell a guiar o carro, o terceiro piloto em três voltas. O americano foi para a pista, andou no seu ritmo e em pouco tempo, estava na liderança.
Contudo, na volta 55, quando passava Bonnier, que iria perder uma volta, o sueco sofre um furo. Apesar de controlar da melhor maneira que podia, ficou na trajectória de Schell e ambos colidiram. O carro de Bonnier foi cortado ao meio novamente devido a um poste de iluminação, mas o sueco sobreviveu, enquanto Schell foi projectado do carro, escapando ileso e batendo contra um muro, metros à frente do outro Maserati. Para piorar as coisas, o poste caiu… em cima do seu carro em chamas, felizmente sem consequências físicas para os pilotos.
Contudo, para a Maserati, as suas chances em conquistar o título tinham acabado. A Ferrari triunfaria em linha, com os quatro primeiros lugares, com Collins e Phil Hill em primeiro, uma volta na frente de Mike Hawthorn e o italiano Luigi Musso. Os alemães Wolfgang von Trips e Wolfgang Seidel foram terceiros, enquanto o melhor Maserati foi um 300S guiado pelos locais Mauricio Marcotulli e Ettore Chimeri, que ficaram na sexta posição, a dez voltas do vencedor.
Aquela tarde desastrosa causou um golpe profundo na Maserati. Duas semanas após o GP venezuelano, a marca declarava falência e os seus bens iam para um administrador. A sua presença no automobilismo tinha-se ido em chamas, numa tarde de calor em Caracas. Os automóveis continuariam a correr em diversas corridas, mas todas nas mãos de privados. Alguns meses depois, em Reims, palco do GP de França, foi a bordo de um desses carros que Juan Manuel Fangio se despedia do automobilismo. E quase a seguir, em 1959, a revolução do motor traseiro, através dos Cooper, fazia dos 250F de Fórmula 1 monstros obsoletos.
Entretanto, em Caracas, os dias de Perez Jimenez estavam contados. Acossado em todo o lado, por causa do seu reinado de pulso de ferro, até os militares estavam fartos dele. A 23 de Janeiro de 1958, um golpe de estado colocou tanques nas ruas e este fugiu para os Estados Unidos, onde ficou até 1963, quando foi extraditado para o seu país natal, no qual foi acusado de ter desviado mais de 220 milhões de dólares dos cofres do estado. Passou cinco anos na prisão, aguardando julgamento, mas quando tal aconteceu o processo prescreveu, e exilou-se em Madrid, onde morreu a 20 de Setembro de 2001, aos 87 anos.
Quanto ao GP venezuelano, a organização, sem o apoio do seu patrono, não teve mais a capacidade de fazer algo parecido. Ainda por cima, nunca foi uma corrida lucrativa, e o novo regime nada queria ter de relacionado com a era anterior. Tinham de passar quase 20 anos para o país regressar às luzes da ribalta, e tal aconteceu no motociclismo, graças a pessoas como Johnny Ceccoto e Carlos Lavado, entre outros.
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