Clássicos • 25 Fev 2023
1936: o ano em que o lobo-da-tasmânia foi extinto e o ano dos Jogos Olímpicos de Berlim nos quais Jesse Owens se tornou no primeiro atleta a vencer quatro medalhas de ouro numa mesma edição das olimpíadas (e logo em frente à cúpula nazi). Ano da aprovação da Constituição Soviética, em pleno governo de Estaline, e também do primeiro voo do Spitfire, é também o ano em que da fábrica da Rolls-Royce saía um 25/30 completamente incapaz de adivinhar o que o futuro lhe reservara.
Comprado por Lady Edgecumbe, o modelo inglês equipado com um motor de seis cilindros em linha com 4257cc viria a pousar nas mãos do Pai de Rupert Grey, médico em Londres com consultório privado em Kensington.
O Rolls-Royce tornava-se assim a escolha perfeita para a visita aos pacientes mais abonados, feitas com o pequeno Rupert a acompanhar o seu Pai, descobrindo pelo caminho casas e lugares admiráveis.
Saltamos directamente de meados do século passado para o dia 18 de Abril de 2024 e diante de nós, com o seu ralenti possante mas ao mesmo tempo suave e discreto, estaciona este mesmo Rolls-Royce. De olhos bem abertos, mira-nos ostentando com orgulho e sapiência as marcas de um caminho que não caberá neste texto: seria injusto tentar condensá-lo, tal é a magnificência literalmente marcada na carroçaria, e em cada pedaço de metal onde ressoam as cicatrizes de uma viagem no tempo que parou durante umas horas no Caramulo.
Sorridentes, Rupert Grey e a sua mulher Jan cumprimentam os ares da Primavera que rodeiam o Museu numa manhã em que a natureza parece ter-se vestido de gala para receber um dos seus. Aqui estacionado em repouso, mais do que uma máquina imensa, o Rolls parece um ser vivo em perfeita comunhão com o seu habitat.
Tal como era habitual na época, a Rolls-Royce construía o chassis que era posteriormente carroçado ao gosto do cliente, nalgumas das companhias mais ilustres do seu tempo. Olhando as portas e os pára-choques, os estribos e os faróis, percebemos que esta carroçaria em particular foi esculpida pelos milhares e milhares de quilómetros já percorridos. De facto, só na Índia foram calcorreados perto de 13 mil – uma viagem para a qual despertaram quando Rupert escutou a história de um marajá que foi a Londres nos anos 30.
Tendo visitado o showroom da marca em Berkeley Square, este foi recebido com estranheza pelo vendedor devido à sua aparência, não resistindo o marajá a perguntar-lhe quantos modelos tinha à disposição. Diante da resposta, encomendou logo um de cada e, movido pela fúria do tratamento de que tinha sido alvo, transformou os novíssimos Rolls em dustcarts (numa tradução livre, carros… do lixo).
Numa altura em que o Império Britânico estendia ainda os seus longos braços por uma imensidão de território, a história deste gesto de reprovação do marajá despertou em Rupert a vontade de levar o Rolls-Royce a atravessar a Índia onde, entre muitas outras peripécias, passaram cinco dias a dormir no rio e comeram refeições fascinantes em pratos de bambu – histórias essas que podem ser vistas no filme documental Romantic Road, disponível na Netflix e com produção executiva de Sharon Stone.
Regressamos novamente ao dia de ontem, e encontramos Rupert e Jan a meio de uma viagem de um mês pelo nosso país. Vêm do Norte, e páram agora um pouco junto de nós.
Não estivéssemos no Museu do Caramulo, e uma das primeiras perguntas não poderia ser outra: “o automóvel está a aguentar bem, não aqueceu na viagem?” Rupert sorri, soltando “a limitação da viagem é mesmo o nosso aquecimento, não o do carro”. Depois da dormida no Buçaco, brindam-nos com o fascínio pelo requinte observado na nossa arquitectura, pelos detalhes que os portugueses colocam naquilo que edificam, da casa mais humilde ao maior monumento. Por vezes com algum descuido, rematam, mas sempre com atenção ao detalhe.
Escrutinamos o Rolls-Royce e descobrimos malas e livros, mochilas e algures o moleskine precioso de Rupert, no qual dançam as letras que dão corpo às memórias que vão sendo construídas neste caminho. De facto, um dos objectivos desta viagem por Portugal era precisamente parar para escrever, mas a viagem do tempo que acontece em si mesmo nem sempre deixa que os propósitos assim se alcancem.
É ainda sobre o capot em que a tinta já deu lugar à patine que ainda abrilhanta mais os traços do Rolls, que Rupert e Jan abrem os mapas antigos que os têm guiado ao longo desta aventura de décadas, e que nunca falham – a não ser que as colinas, os rios e as montanhas se movam.
Para onde seguirão agora?, perguntamos, e logo o olhar de Rupert navega para aquela viagem de Vancouver a Klondike que almeja fazer há anos, ou talvez a opção recaia antes por partir de Santander para Barcelona e dali até à Sardenha. Sicília? Sim, claro, e de lá até Malta, para depois alcançar a Argélia a caminho de Tânger, em Marrocos, e procurar cheirar um pouco da bohemian life que histórias de tempos não muito distantes ecoam.
As horas passam demasiado depressa quando trazem em si tantas partilhas de lugares, pessoas e memórias entrelaçadas no fio de um tempo que, observando Rupert e Jan, está recheado de um futuro por explorar.
Rente à despedida, partilho com Rupert uma expressão que é muito popular entre nós: Se o meu carro falasse… e aproveito para perguntar – o que acha que lhe diria o Rolls, se falasse? “É curioso”, responde, “pois nunca me fizeram tal pergunta”. Talvez um “Obrigado por todo este caminho?”, disparo, em jeito de palpite. Rupert solta um largo sorriso, e logo diz “Não, não. Na certa que diria antes ‘Por favor, conduz-me com mais cuidado do que aquele que habitualmente tens!’”.
Voltando à escuta do ronronar do 25/30, não diria que tal alguma vez soaria a um queixume. Aqui estacionado agora junto ao Silver Ghost do Museu do Caramulo, é como contemplar dois velhos amigos que se encontram ao fim de umas quantas décadas, e que aproveitam as horas deste dia para partilhar as aventuras infindáveis que trazem na pele, e todas aquelas que ainda sonham viver.
Quanto a Rupert e Jan, o sonho prossegue vivo, a caminho de Abrantes e depois Lisboa. Lá chegados, talvez retomem desta vez a viagem novamente para norte. Não sabem ainda bem, depende do que o mapa pousado em cima do ventre vivo do Rolls-Royce lhes apontar.