Arquivos • 19 Set 2022
Embora o mundo dos clássicos não seja de todo homogéneo, com factores diversos a ditarem as regras que eliminam a idade como bilhete de entrada garantida para tal classificação, é curioso constatar que, no caso dos todo-o-terreno, o estatuto de “clássico” é particularmente difuso e desafiante de alcançar. Não existindo uma perspectiva consensual (ou sequer coesa) sobre o assunto, somos forçados a permanecer na dúvida em relação às origens da problemática, podendo apenas especular acerca das mesmas.
Certamente que, como qualquer outra classe de automóveis, os todo-o-terreno têm os seus modelos mais interessantes, os que envelhecem mais graciosamente, os mais desejáveis. Contudo, ao contrário de outros segmentos e configurações, o caminho a percorrer pelos todo-o-terreno de produção até se poderem estabelecer como clássicos parece não apenas mais longo como também pavimentado por nuances que, noutros casos, não se encontram presentes.
Uma parte do problema prender-se-á, talvez, com a própria natureza utilitária destes veículos. Embora todas as categorias de automóveis sejam pensadas com um propósito específico, o termo “utilitário” não é algo que se possa aplicar livremente a qualquer uma. Os desportivos por exemplo serão mais confortavelmente descritos como automóveis com um propósito do que automóveis com uma utilidade. No caso dos todo-o-terreno, tal utilidade associa-se a frequentemente uma noção de serviço o que, em confluência com uma usualmente bastante longa vida activa, limita seriamente a percepção dos mesmos como potenciais clássicos.
Esta noção não é contudo restrita ao campo dos automóveis, longe disso; é aliás um traço social que, por completo acaso, permeia para esse domínio. A concepção colectiva de que o que é utilitário não se destina a ser apreciado noutros moldes ou a cessar actividade sem ser por substituição (pela versão seguinte, conotando o anterior como obsoleto e desprovido de valor) é muito vincada em inúmeras vertentes da sociedade actual. No entanto, este é dos poucos casos nos quais uma perspectiva estritamente social trespassa de modo tão acentuado para o domínio particular dos automóveis.
Outro aspecto do problema passará logo à partida pela natureza limitativa da própria semântica, com a definição “automóvel” a ser afastada por outros termos como “utilitário”, “todo-o-terreno”, “4X4” ou o genérico e – na maioria dos casos – inocuamente incorrecto “jipe”. Depois, igualmente pelo facto da maior parte deste tipo de criações não ressoarem com o público como representativos da respectiva marca. Por exemplo, ao pensar em Lamborghini, as imagens que surgem de imediato na mente da maioria das pessoas serão as de um Miura ou Countach e nunca de um LM002, apesar de esse modelo ter estado 8 anos em produção. Mesmo no caso de construtores mais prolíficos como a Mercedes, a qual desenvolveu um dos todo-o-terreno mais bem conseguidos de sempre, o Classe G (que permanece em produção desde 1979), o mesmo continua a não ser um dos primeiros modelos nos quais se pensa quando as palavras “Mercedes-Benz” são proferidas.
Perante estas barreiras, quais então os modelos devidamente estabelecidos como todo-o-terreno clássicos? Quais os indiscutíveis detentores do elusivo título? Não surpreendentemente, aos olhos do público em geral, poucos. Em representação do Japão, afirmou-se nos últimos anos o Land Cruiser J40 (1960-1984) muito graças ao facto de se encontrar – com todo o mérito – em voga nos Estados Unidos e como resultado de uma longa e ilustre carreira em África, na América do Sul e na Austrália, a qual cimentou a reputação desta geração de Land Cruisers como um dos mais capazes e duradouros todo-o-terreno alguma vez concebidos. Nos Estado Unidos, além dos Willys MB naturalmente, os Broncos de primeira geração (1966-1977) continuam a dominar pelo charme da sua simplicidade, algo raro em criações para o mercado civil Americano. Em termos de modelos Europeus, merecem referência os anteriormente mencionados Gelandewagen (1979-presente) e claro, os incontornáveis Land Rover (Séries I, II e III; 1948-1985) e Range Rover (“Classic”, 1970-1996).
Mas e além destes poucos modelos, haverá no futuro lugar para outros? A algum ponto, seguramente. Mas antes de enveredar por esse tipo de especulação, será relevante dispensar um momento para reflectir no que é realmente necessário para que um todo-o-terreno seja considerado “clássico”. No caso de automóveis de outros segmentos, o facto de terem alguma idade, possuírem uma história minimamente interessante e serem esteticamente apelativos poderá ser suficiente para garantirem um lugar de honra na designação – ou desfrutarem do título “jovem clássico” junto de quem use o termo – dispensando a necessidade de outros atributos de maior. Contudo, no que diz respeito aos todo-o-terreno, não será unicamente necessária uma história interessante e um design atraente, mas também proficiência comprovada na função a que destinaram: vencer os desafios associados a quando o alcatrão termina. A vertente utilitária não pode apenas estar presente, tem igualmente de ser destacada, comprovada, quase elevada a estatuto de lenda no imaginário colectivo. É por este motivo que criações como o Laforza são vistas como pouco mais que meras curiosidades. Um futuro clássico? Supomos que sim, pela raridade; mas nada associado ao facto de ser um todo-o-terreno contribui para essa definição.
Em Portugal há um caso marcante a preencher todos os requisitos para definição como todo-o-terreno clássico: o UMM, mas não nos debruçaremos sobre o mesmo devido a já existir uma extensa literatura sobre este interessante modelo e pelo simples facto de que, sendo português, mesmo que não tivesse sido bem-sucedido, continuaria a ser acarinhado. Em vez disso, consideremos o exemplo de uma interessante criação japonesa que acabou por ser concretizada em terras Ibéricas e se a mesma poderá, ou não, ser vista como um clássico a algum ponto nos próximos anos.
Em 1979, a Nissan adquiriu uma percentagem significativa da Motor Ibérica (Zona Franca de Barcelona), uma fábrica de camiões e tractores da marca Ebro. Lembre-se que, à data, a Península Ibérica ainda se encontrava algo à margem da Europa mas já se preparava a adesão da Espanha à CEE e a Nissan decidiu investir no país. Um dos modelos mais interessantes da companhia era sem dúvida a Patrol; inspirada no Willys Jeep, o todo-o-terreno nascera em 1951, com a terceira geração (Série 160) a surgir em 1980. A partir de 1983, a Patrol seria produzida também na fábrica de Barcelona, a primeira da Nissan no continente europeu. Em 1986, um facelift ligeiro resultaria na Patrol 260, um 4X4 de linhas sóbrias mas muito bem conseguidas e motorizações interessantes que se viria também a implementar firmemente em Portugal.
196.000 Patrol acabariam por sair da linha de montagem em Barcelona, a qual viria a produzir o Terrano II em seguida. Em 1987, segundo a Nissan, um em cada dois todo-o-terreno vendidos em Espanha era uma Patrol, tendo nesse mesmo ano o modelo competido também no Paris-Dakar com o patrocínio da Fanta.
As Patrol chegaram a Portugal através da firma Entreposto de Manuel Gamito e a imprensa nacional, à data do lançamento da 260, celebrou a capacidade da Patrol fora de estrada, o conforto da suspensão, a facilidade de manobra, a mecânica forte e a comodidade do acesso à traseira com um tailgate ao estilo do Range Rover (Automundo 05/02/1986). Em termos de motorização, a Nissan contava com motores 2.4 (Z24) e 2.8 (L28) a gasolina, assim como motores 2.8 (RD28) e 3.3 (SD33) Diesel de 6 cilindros com ou sem turbo. O Diesel SD33 de 95 cavalos com o qual as primeiras 260 em Portugal vinham equipadas exigia um consumo significativo de aproximadamente 18L em utilização fora de estrada, factor que eventualmente valeu a alcunha de “petroleiros” a estes veículos, não tendo ajudado o uso do mesmo motor em algumas aplicações marítimas…
O preço da Patrol em território nacional (na versão referida) era de 2300 contos; centenas de unidades acabaram mesmo por ser adquiridas para uso por forças de segurança, sendo a GNR o principal cliente. Aliás, o facto de a GNR ter encomendado um grande número de Nissans Patrol em vez de UMM é um dos factores creditados pelos adeptos do todo-o-terreno nacional como proverbial prego no caixão do mesmo. Actualmente, as histórias de terror das cansadas Patrol da GNR, com pedras de calçada como apoios de bancos, elásticos que seguram as alavancas de mudança no lugar e barulho constante de peças soltas a inundar o interior dos veículos vão surgindo na imprensa (Diário do Distrito, 19/08/2019), mas apesar da obviamente necessária reforma do serviço activo, é bastante impressionante o nível de resistência que estes todo-o-terreno demonstraram ao longo dos últimos 33 anos de serviço.
Destinar-se-ão as 260 então a estatuto de clássico? É difícil afirmar. Talvez daqui a mais duas décadas se comece a pensar no assunto dessa forma em relação a este modelo e outros semelhantes do mesmo período, ou talvez não. Ninguém disputará o estatuto de um SL R107, um 635, um Quattro ou um CX como clássicos e todos se encontravam igualmente em produção em 1986, mas no caso dos “utilitários” o pensamento é diferente. Mesmo dentro da própria comunidade de apreciadores é difícil encontrar aqueles que encarem os todo-o-terreno mais antigos como “clássicos” devido à ainda plena capacidade dos mesmos realizarem as tarefas para às quais foram idealizados há 30 ou 40 anos.
Existem é claro, excepções. Em determinados nichos e sob condições muito particulares, os todo-o-terreno são vistos como uma categoria de clássicos igualmente merecedora do tratamento VIP, com empresas como a Icon nos Estados Unidos, a Land Rover Classic Works na Inglaterra e mesmo a Coolnvintage em Portugal a impulsionar estes modelos até à beira da perfeição estética. Contudo, os custos de tais intervenções apelam unicamente a um echelon muito elevado em termos de clientela com preços que começam, usualmente, na casa dos seis dígitos. Aí, os todo-o-terreno intervencionados afastam-se novamente dos seus propósitos utilitários originais, tornando-se algo comparável a um agricultor em smoking: de resto, perfeitamente apto a ir para o campo mas limitado por não querer arriscar dano ou mácula a uma indumentária dispendiosa e despropositada ao contexto.
Sumariamente, esta categoria de clássicos não deveria ser apreciada unicamente após restauros de custo astronómico. São modelos que deveriam ser cada vez mais bem-vindos aos encontros e concentrações generalistas de modo a alterar a percepção do público e dos próprios entusiastas de clássicos em relação aos mesmos, mas tal não tem sido o caso. Recentemente assistimos a um evento no qual um Range Rover acompanhou uma caravana de outros automóveis clássicos e o público – misto de observadores casuais e entusiastas – assumiu uma postura de quase indignação perante o episódio pois, para estes, o britânico encontrava-se fora de lugar naquele contexto.
Usualmente, os todo-o-terreno clássicos não são peças de museu, não são frágeis, não se encontram (na maioria dos casos) imaculados; são criações com um ethos de utilidade que aparentam recusar a aposentação e que nos levam igualmente a percepcioná-los como meros eternos trabalhadores, mas não o são. Merecem ser celebrados como quaisquer outros clássicos.