Arquivos • 10 Mai 2023

Soube-se no passado mês de Fevereiro que irá acontecer um rali de teste no estado de Tenessee, no sentido de saber se tal terá as condições necessárias para acolher o WRC nos Estados Unidos a partir de 2026. Caso aconteça, seria a primeira ocasião em quase 40 anos que o Mundial faria presença nas “terras do Tio Sam”. Nessa altura, entre 1986 e 88, o calendário acolhia o Rally Olympus, que acontecia no estado de Washington, no canto noroeste do país, e um desses ralis tornou-se, simbolicamente, o rali final do Grupo B.
E caso queira saber os vencedores, todos tinham algo em comum: corriam em carros da Lancia.
Mas a primeira experiência tinha acontecido muito antes. Em 1973, na primeira temporada do Mundial, existia o Press-On-Regardeless Rally, que acontecia na área de Detroit, no estado do Michigan. Com um piloto local, Walter Boyce, a ganhar em 1973 num Toyota Corolla, no ano seguinte, o vencedor foi o francês Jean-Luc Therier, num Alpine. O rali continua a acontecer, mas desde 1975 que está fora do calendário. Curiosamente ao mesmo tempo, acontecia um rali no Canadá, o Rideau Lakes, no estado de Ontário.
Passou uma década até ao regresso dos ralis na América, e a escolha foi mais distante, com uma prova que começou em 1968 como um evento local. Cinco anos mais tarde, em 1973, a SCCA (Sports Car Club of America) acolheu o rali no seu calendário.
O Olympus Rally foi criado em 1973 por um grupo de entusiastas da zona de Shelton, no estado de Washington. Com classificativas à volta do Mont Olympus, um dos vulcões da zona noroeste americano, começou a fazer parte da SCCA Rally Championship (agora Rally America) tornando-se rapidamente num dos ralis mais populares do pais. Gene Henderson foi o primeiro vencedor, a bordo de… um AMC Jeep! Porém, ao fim de alguns anos, pilotos como John Buffum conseguiram a vitória a bordo de máquinas como o Mazda RX-7 ou Audi Quattro. Outro grande vencedor deste rali foi o neozelandês Rod Millien, que o conquistou em 1980-81 e 1983-84, empatando em termos de vitórias com Buffum.
Contudo, no final de 1984, os organizadores decidiram ser mais ambiciosos e trazer os melhores pilotos de rali do mundo para aquela parte dos Estados Unidos, e a FISA acedeu à ideia. Decidiram fazer um evento de teste no final de 1985, após o Rali RAC, na Grã-Bretanha, com as equipas de fábrica a levar pelo menos um carro para o local. O primeiro a cruzar a meta foi o finlandês Hannu Mikkola, a bordo de um Audi Sport Quattro.
Como o teste correu bem, os responsáveis da FISA decidiram que o rali iria fazer parte do calendário oficial, sendo o último rali do ano, a decorrer entre os dias 4 e 7 de Dezembro de 1986, num evento patrocinado pela Toyota. Ao todo, o rali iria ter 39 classificativas, num total de 525 quilómetros cronometrados, com classificativas quer em asfalto, quer em gravilha.
Contudo, quando máquinas e pilotos chegaram àquela altura do ano, muita coisa tinha acontecido. Não só os acidentes em Portugal e na Córsega, como também as polémicas do Rali de Sanremo, onde os Peugeot foram desclassificados pelos comissários italianos, para que favorecessem os Lancia, embora não admitissem abertamente que era por causa disso. A Peugeot tinha recorrido, mas por essa altura, a FISA ainda não tinha tomado qualquer decisão, logo, os Lancia poderiam vencer o Mundial, através do finlandês Markku Alén. Aliás, era Alén que estava presente nesse rali, como o único representante da marca italiana. A Peugeot, sua rival, iria levar também um só carro, para Juha Kankkunen, que também estava a lutar pelo título mundial com o seu compatriota Alén.
Se Peugeot e Lancia levavam oficialmente um só carro (havia privados), as coisas para a Toyota eram um pouco diferentes. A marca japonesa, nessa altura, só participava nos ralis mais “exóticos” como o Safari e o Rali da Costa do Marfim, com pilotos como os suecos Bjorn Waldegaard e Lars-Erik Torph, bem como o neozelandês Steve Millien. Havia privados presentes, como o italiano Paolo Alessandrini, num Lancia Delata S4, ou o neozelandês “Possum” Bourne, num Subaru, mas também havia dois americanos na lista de inscritos: John Buffum, num Audi Quattro já datado, e John Woodner, num Peugeot 205 T16. Ambos eram pilotos experimentes e tendo máquinas capazes de andar a par e passo com os consagrados, prometiam mostrar-se.
Tudo em disputa
Quando os pilotos chegaram a Seattle, Alén tinha um ponto de vantagem (os resultados do Rali de Sanremo ainda contavam) sobre Kankkunen, pois o finlandês da Lancia tinha sido segundo classificado no Rali RAC, vencido por Timo Salonen. As estradas estavam cheias de entusiastas, é verdade, para ver qual dos dois iria levar o título para casa, mas um rali destes em paragens como estas eram coisas relativamente estranhas, pois não era um evento… americano.
O rali começou com especiais nocturnas em volta de Tacoma, com Markku Alén a ter problemas com a sua direcção assistida a avariar, deixando Kankkunen no comando. Contudo, com o amanhecer, quem tinha problemas era Kankkunen, com problemas eléctricos – teve de trocar duas vezes de bateria – e o comando mudava de mãos mais uma vez. Alén aproveitou a ocasião para tentar afastar-se o mais possível do piloto da Peugeot, que já sabia em 1987 que iria pilotar… para a Lancia!
Atrás, Buffum conseguia ser mais veloz do que os Toyota oficiais, com Torph a ser melhor do que Waldgaard, e eram os únicos que conseguiam andar ao ritmo dos dois primeiros, que no final desse segundo dia, debaixo de frio e chuva, tinham uma distância de 40 segundos, com vantagem para o piloto da Peugeot.
No terceiro dia, Alén continuou ao ataque, distanciando-se de Kankkunen, para ver se conseguia vencer, que seria mais do que suficiente para ser coroado campeão do mundo naquele ano. Kankkunen não conseguia acompanhar o ritmo de Alén, e ambos, claro, distanciavam-se enormemente de Buffum e dos Toyota. E para piorar as coisas, um furo fê-lo perder mais 45 segundos para Alén, consolidando a liderança para o piloto da Lancia.
No último dia, o nevoeiro tomou conta das classificativas e Alén adoptou uma toada cautelosa, o que fez com que diminuísse a distância para Kankkunen, na altura de minuto e meio. O piloto da Peugeot esforçou-se, diminuindo a diferença para 40 segundos, mas não chegou: Alén seria o vencedor, com cerca de 45 segundos de vantagem sobre Kankkunen, e parecia que o campeonato cairia nas mãos da Lancia, com Alén, então com 35 anos, a ser por fim campeão do mundo.
Buffum ficaria com o lugar mais baixo do pódio, superando os Toyotas de Lars-Erik Torph e Bjorn Waldgaard. Contudo, o americano da Audi ficaria a… vinte minutos do vencedor.
Campeões… Por onze dias
A vitória de Alén daria ambos os campeonatos para a Lancia, numa temporada marcada pela glória e pela tragédia, especialmente com a perda de Henri Toivonen na Córsega. Contudo, os eventos de Sanremo ainda estavam a assombrar toda a gente, e a FISA ainda se encontrava a decidir o que fazer com eles. A resposta surgiu a 18 de Dezembro, poucos dias antes do Natal, e com o Rali de Monte Carlo de 1987 à esquina, o primeiro debaixo dos regulamentos do novo Grupo A.
No final, em Paris, a entidade máxima do automobilismo tomou uma decisão inédita: anulou o rali de Sanremo, retirando a vitória à Lancia. Os Peugeot, desclassificados porque alegadamente tinham uma aleta que causava efeito-solo, que era proibido… na Fórmula 1, afinal estavam legais e a FISA tinha entendido que o esquema não era mais do que um expediente para retirar de cena os carros franceses a favor dos carros italianos. E como a FISA não queria um título mundial “adulterado”, decidiu que os Peugeot eram os campeões, dando o título mundial a Kankkunen, segundo classificado neste Olympus Rally.
Porém, para a Peugeot não foi o suficiente. Com o fim do Grupo B, levou os seus 205 T16 para o Rali Dakar e lá ficou até ao final da década com pilotos como Ari Vatanen, Jacky Ickx e Bruno Saby, voltando apenas ao WRC no ano 2000, com o modelo 206. Para a Lancia, pode não ter ganho o Mundial de 1986, mas até 1990, todos os títulos lhes pertenceram, num domínio sem igual na história dos ralis, graças ao modelo Delta e Delta Integrale. Apenas no inicio da década seguinte, com a chegada dos japoneses Toyota e Subaru é que as coisas começaram a ficar um pouco mais equilibradas.
Para o Olympus Rally, a edição de 1986 foi um sucesso, e voltou a entrar no calendário em 1987, de novo a ser a última prova do calendário, vencida por Juha Kankkunen. Permaneceu no calendário até 1988, altura em que saiu e caiu em hibernação até… 2006. Hoje em dia, o rali faz parte do campeonato americano, e já teve vencedores como Ken Block, Travis Pastrana e David Higgins.