Clássicos • 09 Jun 2016

Na sequência do desafio lançado a todos os nossos leitores, o Jornal dos Clássicos começou já a receber as primeiras histórias, que nos emocionam na eterna lembrança de que um automóvel, um motociclo, serão sempre mais do que apenas um meio de transporte.
Iniciamos, desta forma, a viagem das memórias com O Maserati do meu Pai, por Nuno Oliveira, cuja partilha desde já agradecemos.
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Era o ano de 1989. O Fiat Tipo era o carro do ano, as cassetes davam o lugar a CDs, eu tinha 15 anos, havia uma festa de fim de ano e o Maserati do meu pai estava parado na garagem. Esta história tem tudo para correr mal, certo?
Já há alguns anos que eu sabia conduzir. À troca de lavar os carros ao fim de semana, os meus pais lá me deixavam tirar o carro da garagem e fazer as manobras necessárias. Com 12 ou 13 anos era uma daquelas coisas que me fazia sentir mais crescido. Mal sabia eu o bicho que se criava dentro de mim.
À conta de vivermos num sítio bastante calmo, as chaves ficavam sempre na ignição enquanto os carros estavam na garagem. Os meus pais não podiam imaginar que isto viria a ser um ingrediente chave na aventura que se segue.
Na noite da tal da festa de fim de ano lectivo na discoteca local, deixei os meus pais irem para a cama, sorrateiramente desci as escadas e empurrei o carro para fora da garagem. Desci toda a rua com o motor desligado, pois o ronco do V6 Biturbo ia certamente acordar toda a gente. Depois foi só seguir para o local da festa, calmamente como se nada de anormal se passasse. Quando cheguei estavam lá amigos e amigas e seguiram-se algumas horas de entretenimento normal. À hora de ir embora qual foi o espanto de todos quando perceberam que eu estava de carro… e não era qualquer carro.
Era um Maserati 420Si. A última variante 3 válvulas por cilindro do V6 2 litros Biturbo da marca do tridente. Eram 225 cavalos de carro lindo. Preto com interiores creme, todos em pele, claro. Tinha uma presença forte e ao mesmo tempo era discreto. Tinha um trabalhar rouco mas não muito alto. Quando se abria o capot, havia dois tubos cromados dos intercoolers ao colector de admissão que eram uma conjugação de engenharia e estética que, sejamos francos, só os italianos sabiam fazer.
Era um carro caprichoso. A caixa dog-leg com um feeling muito mecânico era dura na engrenagem dos diferentes carretos. Mais dura, só mesmo a embraiagem que fazia com que fosse um carro difícil para trânsito. Mas em estrada… ui, que carrão! No verão anterior ao regressar de uma viagem ao Algarve lembro-me que só a coluna especial do primeiro ministro Cavaco Silva nos ultrapassou. Seguiam em alta velocidade para o incidente do incêndio do Chiado. Não havia outro carro na estrada à altura do Maserati. Uma redução com a devida antecipação para encher os turbos e ele colocava os cavalos no chão de uma forma que as nossas EN não estavam preparadas. É claro, as médias de mais de 20l/100km eram uma realidade mas isso não é uma preocupação quando se tem 15 anos…
Mas divagamos. Voltando à noite em questão, todos os amigos rodeavam, apreciavam e queriam dar uma volta no carro. Alguns acabaram mesmo a receber uma boleia para casa porque ficava no meu caminho de regresso. Carro cheio de jovens, coração vazio de receios e o Maserati ecoava pelas ruas da cidade como se a possibilidade de sermos parados pela polícia fosse menor que ganhar um Totobola.
Adrenalina e inconsciência não foram nunca uma boa combinação e eis que o Maserati se lança a quase 160km/h por uma rua municipal no final da qual havia uma curva muito aberta. Entenda-se que “muito aberta” quando se fazia a 70 ou 80km/h. Como eu viria a descobrir, a 160km/h as coisas eram diferentes. Com medo, travo a meio da curva, perco a traseira, o carro faz 4 ou 5 pêndulos no que foram os 6 segundos mais longos da história e de alguma forma milagrosa, não bate em nada.
A quantidade de coisas que podiam ter corrido mal neste momento são tantas e tão extraordinariamente graves que vale a pena enunciar. Era uma rua de dois sentidos, havia guias de passeio (altas), postes de iluminação e acima de tudo, de um dos lados da rua, um desnível de 3 metros para um terreno agrícola. Com o carro cheio de miúdos todos sem cinto (porque, anos 80) um veículo no sentido oposto ou qualquer um destes obstáculos poderia ter sido fatal.
Não acredito no divino, mas é a justificação mais lógica uma vez que me faltavam todas as competências técnicas para livrar o carro daquela situação. Não tenho outra explicação! De alguma forma o carro pára, atravessado na estrada, no meio de uma nuvem de poeira sem ter batido em nada… nem um risco! O momento foi ainda mais pesado pelo silêncio de todos os ocupantes… todos incrédulos. Regressei a casa, desliguei o carro no alto da rua, entrei na garagem com o impulso da descida. Tão sorrateiramente quanto tinha saído, enfiei-me na cama a pensar que ninguém nunca mais ia saber do sucedido. Tinha tido sorte e era uma experiência a não repetir. Ainda bem que não tinha sido apanhado!
Errado mais uma vez…
Como é lógico, não havia muitos Maserati e como tal, as poucas pessoas que viram o carro a passar perceberam que a altas horas da noite não era o meu pai certamente. A partir daí não foi difícil chegar ao culpado. Apanhei o raspanete da minha vida, percebi então que o que fiz era, aos olhos da lei, um crime e que as consequências para os meus pais teriam sido gravíssimas. Tudo isto sem eles sequer saberem que o carro esteve a centímetros de uma viagem para a sucata.
Como que por ironia, infelizmente, este carro acabou mesmo na sucata. Anos mais tarde num embate lateral com um Citroen CX, o carro ficou sem recuperação. Tenho pena que este carro não esteja na família porque é a minha primeira história automóvel. Por outro lado, há um ditado que diz: filho és, pai serás… Não quero ter um Maserati para não repetir a história e pelo sim, pelo não, cá em casa já antecipei a explicação do crime e das consequências graves, não vão as ideias parvas da adolescência serem hereditárias!

Fotografia: Hélio Valente de Oliveira