Arquivos • 23 Mai 2018
Grandes momentos da história têm o poder de muitas vezes fazer-nos preterir injustamente partes ou participantes igualmente importantes. Este é um claro exemplo disso.
Se questionarmos qual a ligação entre o lendário Grupo B e o Opel Kadett, garantidamente a resposta que teremos, incluindo de muitos petrolhead, será: nenhuma!
Grupo B será sempre sinónimo de Audi, Lancia, Ford, Turbo, potências monstruosas, protótipos disfarçados de modelos de produção, mas nunca se associa a Opel e o genérico Kadett a este histórico período em que parecia que tudo era possível. Nada poderia ser mais injusto.
A Opel estava presente nos campeonatos de Rali desde o final dos anos 1960. Os seus automóveis de competição sempre foram construídos com princípios tradicionais comprovados e simples: mecânicas fiáveis, chassis leves e ágeis. Sempre foram competitivos e com Walter Röhrl a Opel conseguiu o seu primeiro grande triunfo internacional com este a sagrar-se Campeão Europeu de Ralis de 1974. O sucesso levou a Opel a tentar a sorte no campeonato mundial. Mas o não ter um departamento de competição próprio, entregando o desenvolvimento a preparadores externos como a Irmscher, afasta a Opel das vitórias.
Para a década de 1980, esse plano teria que ser alterado. Com uma atitude mais séria em relação à competição, a Opel desenvolveu o Manta B 400 Grupo B e o Ascona B 400 Grupo 4. Lançados em 1980, competiram em eventos selecionados no calendário do WRC e a aposta da Opel dá frutos, com o retornado Walter Röhrl – que tinha saído para a rival Fiat – a conseguir o título mundial em 1982.
Contudo apesar do triunfo, estava claro que algo mais radical precisava ser feito para acompanhar a revolução dos motores turbo e tracção integral iniciada pela Audi. A Opel procurou aproveitar os trunfos desta, mas sem o peso a a distribuição de massas errada das máquinas alemãs, e com o regulamento liberal do Grupo B a Opel podia na prática construir um automóvel à medida da competição, desde que produzissem as mandatórias 200 versões de estrada para efeitos de homologação.
Após experiências, em 1983 e 1984, com o Kadett D 400 – basicamente a mecânica do Manta B 400 na carroçaria mais leve e compacta do Kadett D, mas apenas tracção traseira – e protótipo Manta B 400 4WD, a Opel avança com o projecto definitivo, com base no recém lançado Kadett E.
Apenas a secção intermédia da carroçaria sobreviveu, com a frente e a traseira substituídas por estruturas tubulares em aço específicas para receber as novas suspensões e o motor Cosworth 2.4 litros utilizado no Manta e no Ascona, colocado à frente mas em posição longitudinal e associado a uma transmissão manual de 6 velocidades X-Trac e claro, tracção integral. Com exceção do tejadilho de aço, todos os painéis da carroçaria foram construídos em materiais compósitos para manter o peso baixo, que se ficava pelos 960 kg e que poderia ser reduzido em cerca de 100kg numa próxima evolução.
Contudo o baixo peso era apenas uma parte da equação de performance do Opel, e no que diz respeito à motorização, a Opel tinha problemas. Os 270 cavalos do motor Cosworth eram uma clara desvantagem, quando os adversários já ultrapassavam claramente os 400 cavalos, e continuavam a aumentar. Inicialmente com a aplicação de um compressor, e mais tarde com um turbocompressor, os técnicos da Opel conseguiram uns relativamente competitivos 400 cavalos, mas a fiabilidade do motor era agora catastrófica!
Estávamos já em 1985 e a equipa estava sob enorme pressão para mostrar algo que pudesse ser competitivo. Decidem então usar a antiga receita de recorrer a preparadores externos para resolver o problema da motorização. Ao ver os sucessos que a Ford estava a alcançar com o auxílio da Zakspeed, encomendam ao preparador alemão a concepção em tempo record de um motor para o Kadett. O resultado foi um motor de 1.9 litros capaz de, com fiabilidade, produzir 500 cavalos.
Numa conferência de imprensa com pompa e circunstância apresentaram o protótipo e anunciaram com orgulho o novo motor. Mas a boa disposição durou pouco tempo. Após alguma pesquisa por parte da imprensa automóvel, descobriu-se que o novo motor que a Opel tanto gabava era na verdade um motor Ford!
A Opel tentou controlar os danos ao referir que era apenas uma prova de conceito e não seria esse o motor que iria efetivamente utilizar mas de pouco serviu.
O erro acabaria por ser ofuscado por vários acidentes trágicos durante a temporada de 1986, e que conduziriam ao fim do Grupo B.
Com isso a Opel podia voltar a utilizar o seu motor e preparar o Kadett para o novo Grupo S, categoria destinada a substituir a loucura irrestrita do Grupo B. Para o Grupo S, a potência do motor seria limitada a 300 cavalos o que permitia usar o motor Cosworth 2.4 litros de forma competitiva novamente, e tentar restaurar a reputação destruída.
A Opel construiu um chassis para testar cada motor: o motor Zakspeed (Ford), o 2.4 naturalmente aspirado, 2.4 Turbo e 2.4 com compressor. Este último utilizava as insígnias da Vauxhall e foi inscrito Campeonato Britânico de Rally de 1986 sob as regras do Protótipo, conduzido por Andrew Wood para atrair o mercado britânico e para continuar o desenvolvimento do projecto enquanto o Grupo S nao era implementado no campeonato Mundial.
Pesando cerca de 960 kg e produzindo apenas 340 cavalos de potência, o carro estava mal equipado para lutar contra os monstros exilados do Grupo B como o Ford RS200 e MG Metro 6R4. Mesmo assim, terminou em 4º lugar, dando à Opel esperança para o futuro.
Simultaneamente, a Opel adaptou dois dos chassis para competir no Paris Dakar de 1986. Os carros utilizavam motores 2.4L naturalmente aspirados com a potência reduzida para 250 cavalos, para aumentar fiabilidade e tolerar a terrível qualidade da gasolina africana. Suspensão e chassis foram reforçados em pontos-chave e tanques de combustível de 300L foram instalados. As medidas ajudaram os Opel a suportar os rigores do deserto, mas também os tornaram consideravelmente mais pesados.
Problemas persistentes com a suspensão alterada e com o motor levaram a não conseguir melhor que um medíocre 37º e 40º lugar.
O final da temporada de 1986 trouxe outro revés para a Opel, com a FIA a anunciar também o cancelamento do Grupo S. A partir de 1987, o Grupo A se tornaria a categoria principal do WRC.
Com o fim do Grupo S, a Opel termina definitivamente com o caótico projecto to Kadett Rallye 4S. Uma base pouco competitiva, talvez uma falta de capacidade inventiva dos engenheiros da Opel e principalmente mau timing fizeram dele provavelmente o maior desperdício de recursos de um construtor para produzir um automóvel à altura do Grupo B.
Apesar de nunca ter corrido como parte do campeonato, o Kadett teve um fim de carreira semelhante. Um dos chassis que correu no Paris Dakar foi vendido ao bicampeão britânico de Rallycross, John Welch. O carro foi adaptado aos regulamentos e exigências do dinâmico campeonato. Welch manteve o motor Cosworth – ainda que reduzindo a sua capacidade para 2.1L – mas instalou um satânico turbocompressor do motor BMW M12/13 utilizado na Fórmula Um. O resultado foram uns selvagens 650 cavalos.
No campeonato britânico de Rallycross o Opel enfrentou os mesmos carros que foi construído para bater, e esteve à altura dos míticos adversários. John Welch continuaria a dirigir o Kadett até 1992 mas infelizmente não conseguiria outro título com ele. Parece que o Kadett Rallye 4S esteve desde o início destinado ao esquecimento e não creio que a Opel, no fim de tantos percalços, se tenha importado que tal tenha acontecido.