Boavista: Templo sagrado do automobilismo nacional

Competição 07 Dez 2023

Boavista: Templo sagrado do automobilismo nacional

Por José Barros Rodrigues

A organização do km lançado da Boavista, em 26 de agosto de 1923, foi um ato de paixão pelo automobilismo, aproveitando a relativa acalmia social desse ano no nosso país e a circunstância da carismática avenida da cidade do Porto prestar-se de forma exemplar para uma competição com essas características. Na verdade, o período político que se desenrola entre o 6 de Outubro de 1910 e o 28 de Maio de 1926 é caracterizado por uma grande instabilidade política e social, com greves, pronunciamentos civis e militares, revoltas violentas e um estado latente de guerra civil, entrecortado com pequenas janelas temporárias de acalmia.

Como escreveu o historiador Douglas L. Wheeler, a I República foi o regime parlamentar mais instável da Europa Ocidental. Por essa razão, nos dezasseis anos incompletos desse regime organizam-se apenas 18 provas de automóveis no nosso país, sendo 10 delas realizadas no Norte e nas Beiras, 7 em Lisboa e uma na Extremadura – a rampa de Santarém. A maior parte das provas são de pequena duração – rampas, circuitos de reduzida extensão e km lançados ou de arranque, por razões logísticas, financeiras e também sociais, de modo a evitar expor os concorrentes ao atravessamento de eventuais ambientes hostis.

Lisboa tinha organizado o km de arranque da Avenida, em 1922 em 14 de Maio de 1922 e esse “embrião” deve ter demorado a desenvolver-se entre as industriosas gentes do Norte que resolveram pouco mais de um ano depois organizar a sua primeira prova de aceleração no coração da cidade do Porto.


O periódico “Sporting” do Porto que, mais tarde, organizaria no ano de 1925 duas provas historicamente muito importantes do automobilismo português – o Circuito de Trás-os-Montes e o Rali a Chaves – entendeu avançar para a organização dessa corrida de km Lançado na extensa Avenida da Boavista, marcando assim a diferença para o km de Arranque de Lisboa, realizado em 1922 na Avenida da Liberdade. O vencedor de ambas as provas – Avenida da Liberdade e Avenida da Boavista – seria Abílio Nunes dos Santos no seu poderoso Mercedes 28/95 à média de 122,4 km/h.

Carlos Bleck, num Bugatti Brescia, vencedor do km lançado da Boavista em 1925


Em 1924 há outra vez um hiato na organização de provas de automobilismo entre nós, devido à enorme crise política que acabaria por gerar o golpe de 18 de Abril de 1925. Assiste-se depois a uma descompressão que motiva a organização de cinco provas de automóveis – e que seriam as últimas dessa conturbada I República – em Santarém, no Porto, duas em Trás-os-Montes e outra no Estoril, entre Julho e Outubro desse ano. A prova realizada na cidade Invicta correspondeu à II edição do km lançado e teve lugar no dia 30 de Agosto de 1925, em que se registou a vitória de Carlos Bleck ao volante de um Bugatti Brescia, a primeira vitória absoluta de um Bugatti em Portugal.

Eduardo Ferreirinha, no Ford A especial por si desenvolvido e financiado pelo empresário Manoel Menéres – gerente da concessão Ford Manuel Alves de Freitas & Cª – em acção no circuito da Boavista em 1931


O regresso da Boavista nos anos de 1930

Em 1931, assiste-se a um epifenómeno automobilístico em Portugal com a organização inusitada, mas meritória, de provas de circuito. Lisboa, Porto, Vila do Conde, Póvoa de Varzim, Covilhã, Vila Real foram assim palcos de diferentes corridas, com distintas categorias, que tiveram bom acolhimento quer entre os concorrentes quer junto do público, que aprovou este novo tipo de espectáculo. No Porto, o local escolhido para a realização do circuito seria uma vez mais a grandiosa Avenida da Boavista, definindo-se o traçado mais simples possível, com duas longas retas e duas curvas apertadas a ligá-las – um pouco à maneira do circuito de Avus, em Berlim, na Alemanha. O Circuito da Boavista teve três edições, entre 1931 e 1933, sendo a primeira edição uma singularidade na história do nosso automobilismo por ter constituído a primeira corrida de automóveis disputada entre nós no sistema de “handicap” – singularidade essa que daria a vitória a Fernando Palhinhas num Singer, apesar da melhor média ter sido efectuada por Roberto Sameiro, num Alfa Romeo 6C 1750 com 105,540 km/h.

Escreveu a revista do ACP nessa época: “As grandes ideias são sempre repentinas. Temos aqui um exemplo: muito tempo passou sem que ninguém se lembrasse de aproveitar – mesmo depois das melhorias feitas no local – as duas retas da longa Avenida da Boavista, para uma prova de automóveis em circuito fechado.”

Um ano depois, especulou-se que o circuito poderia crescer, aproveitando a Avenida Marechal Gomes da Costa e as Avenidas do Brasil e de Montevideu para fazer um traçado triangular, muito rápido, mas isso não aconteceria. O circuito seria disputado por duas categorias, em provas separadas e, apesar de haver uma categoria “Corrida”, a melhor média acabaria por ser obtida na categoria “Sport” com Vasco Sameiro num Invicta a efectuar o percurso total à média de 96,978 km/h. Em 1933, a organização apostaria num duelo prometedor, entre os dois pilotos que tinham os melhores automóveis de competição do incipiente parque nacional: o Alfa Romeo 8C2300 de Vasco Sameiro e o Bugatti 35B de Henrique Lehrfeld. Este último carro chegou ao Porto de comboio completamente desafinado e não sendo possível pô-lo no ponto para a corrida, esta acabou por ser um passeio triunfal de Sameiro, que venceria à média de 126, 463 km/h.

Edição de 1933 do Circuito da Boavista. Vasco Sameiro em Alfa Romeo 8C2300 prepara-se para dobrar o Bugatti 35B (que hoje está exposto no Museu do Caramulo) conduzido por Henrique Lehrfeld


Em 1937, aproveitando a presença do brasileiro Benedito Lopes (Alfa Romeo 8C2300) e do inglês Teddy Rayson (Maserati 4CM 1500), que vieram a Vila Real e acederam a correr no Estoril uns dias depois, pensou-se em organizar um novo km lançado da Boavista, aproveitando esse intervalo de tempo, mas essa ideia acabaria por não ser exequível.

A afirmação da Boavista no contexto europeu

Em 1950 – e depois de Vila Real ter dado o arranque na organização de provas de circuito em 1949 – a SRN do ACP conseguiria desenhar e organizar um circuito nas estradas do Porto, conseguindo convidar alguns pilotos de certa relevância provenientes de Itália (Bonetto, Carini, Romano, Bracco), Inglaterra (Wisdom) e França (Meyrat, Estager). Bracco seria o vencedor no seu raro Alfa Romeo 412, um conjunto mecânico desenhado antes da guerra, agora com uma nova carroçaria desenhada por Rodolfo Vignale. Uma vez mais, a Boavista era o núcleo mais consistente desse traçado, embora a descida da Circunvalação acabasse por vir a ser a sua zona mais selectiva, “onde se separavam os rapazes dos homens.”

A prova foi ganhando em projecção e notoriedade e contou claramente com um certo apadrinhamento das marcas italianas – com a Ferrari à cabeça – as quais venceriam todas as edições da categoria Sport, disputadas entre 1950 e 1956: Ferrari, com quatro vitórias, Alfa Romeo, Lancia e Maserati, com uma cada. Também beneficiou da existência de uma geração de “gentlemen drivers” portugueses, equipados com automóveis de qualidade, como Casimiro de Oliveira, Fernando de Mascarenhas, Vasco Sameiro, José Nogueira Pinto, Joaquim Filipe Nogueira, Borges Barreto e outros, que deram um empolgamento adicional ao numeroso público que ali acorreu todos os anos. O carisma do circuito e a qualidade de organização do Automóvel Club abririam as portas à almejada realização de uma prova oficial de Fórmula 1, o que sucederia em 1958 e 1960, com vitórias em veículos ingleses (Vanwall e Cooper) de dois dos melhores pilotos de todos os tempos: Moss e Brabham.

Felice Bonetto, o vencedor do I Circuito Internacional do Porto, em 1950, ao volante de um Alfa Romeo 412


Alguns factos associados às provas da Boavista

A Boavista foi assim palco de 14 organizações distintas, mas foram os circuitos internacionais, realizados entre 1950 e 1956, na categoria de Sport, e nos anos de 1958 e 1960, a contar para o Campeonato Internacional de Condutores, que tornaram este local icónico no desporto automóvel mundial, ficando bem conhecidos os carris dos elétricos, o piso de calçada, os postes de electricidade protegidos por corajosos fardos de palha e as árvores da circunvalação que tanto assustaram o campeão Ascari. Aqui ficam alguns pontos relevantes que sobressaem na história do circuito.

A consolidação das marcas portuguesas – Na classe 1100, os automóveis portugueses brilharam ao mais alto nível, conseguindo sempre resultados de topo. Na primeira edição, em 1950, o FAP ficaria em 2º lugar, mas entre 1951 e 55 apenas uma vez, em 1954, não seria uma marca portuguesa a vencer essa classe (a LNA chegaria em 2º).


Francisco Corte Real Pereira, piloto do DIMA, mais tarde designado por DM, com o qual venceria a classe de 1100 cc nos circuitos de 1951 e 52


A criação de uma corrida destinada aos veículos de Sport de pequena cilindrada (Taça Cidade do Porto) – Esta prova, nascida em 1953 para agrupar os veículos da classe 1100, teve um grande sucesso. E os automóveis portugueses tiveram papel de destaque nesse êxito, apresentando-se em elevado número nas três primeiras edições. Em 1954, o ACP resolveu aumentar o limite superior de cilindrada desta corrida, passando de 1100 para 1500 cc, permitindo que marcas europeias com mais recursos passassem a dominar estar prova.


Integrado no projecto Alba nos finais de 1952, Corte Real Pereira venceria a I Taça Cidade do Porto em 1953, ao volante do belo automóvel de Albergaria-a-Velha

A estreia nacional do Porsche 550 Spyder – Foi na Boavista, em 1955, que este modelo se estreou em provas nacionais, marcando o início de uma presença que se estenderia até meados dos anos de 1960 e que daria à Porsche uma imagem crescente de competência e de qualidade.

D. Fernando de Mascarenhas, no Porsche 550 Spyder na Taça Cidade do Porto de 1955


A consolidação da “escola inglesa de baixa cilindrada” – Em 1956, os automóveis ingleses de Sport, com motores de 1500 cc, mostraram o seu enorme potencial. A vitória de Roy Salvadori num Cooper Climax seria um dos anúncios premonitórios da importância crescente dos ingleses no desporto automóvel, mas o desempenho dos dois Lotus presentes, também com motor Climax, reforçaria essa “tendência crescente” de domínio inglês no automobilismo mundial.

Roy Salvadori num Cooper-Climax na edição da Taça Cidade do Porto em 1956, afirmaria a superioridade da engenharia inglesa nessa altura


A apresentação sem continuidade da Fórmula Júnior – Na edição de 1958 o ACP resolveu acabar com o formato da Taça Cidade do Porto, apostando na promoção da Fórmula Junior, recentemente lançada em Itália. No papel, parecia ser uma modalidade interessante, mas a má preparação da generalidade dos veículos que foram transportados para o Porto quebrou algum entusiasmo que poderia ter suscitado entre os pilotos portugueses. Mesmo assim, António Barros e Mané Nogueira Pinto ainda mostrariam a sua qualidade em provas europeias uns tempos mais tarde.

Alguns exemplares da Fórmula Junior nas boxes do Porto, em 1958


A estreia mundial do Lancia D25 – Em 1954, o ACP conseguiu aliciar a equipa oficial da Lancia a participar na Boavista com uma equipa de luxo, constituída por Ascari, Villoresi e Castelotti nos modelos D24. O automóvel de Ascari usou neste circuito, pela primeira vez, o motor com as especificações do D25, com 3.750 cc e 300 cv em estreia mundial.

O Lancia D24, equipado com o motor do futuro Lancia D25, no Porto


O duelo Filipe Nogueira-Portago – A edição de 1956 foi marcada pelo fantástico duelo registado entre Joaquim Filipe Nogueira e Alfonso de Portago. Nogueira teve um acidente aparatoso – felizmente, sem grandes consequências – que lhe impediu, no entanto, de lutar até ao fim pela vitória que seria épica.

Joaquim Filipe Nogueira em acção no circuito de 1956, no meio do duelo empolgante que assumiu com o Marquês de Portago


A estreia da Fórmula 1 em Portugal – Em 1958, o ACP finalmente atingiu o seu desiderato ao organizar a primeira prova reservada aos monolugares de Fórmula 1 no nosso país, integrada no Campeonato Mundial de Condutores.

Correspondendo a um sonho com mais de vinte anos do ACP, os monolugares de Grande Prémio competiriam pela primeira vez em Portugal na Boavista no ano de 1958




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