Rally de Portugal 1986: O princípio do fim do Grupo B (Parte II)

Competição 21 Nov 2023

Rally de Portugal 1986: O princípio do fim do Grupo B (Parte II)

Por Pedro Fernandes

A edição de 19 de Março da revista Auto mundo refere que, pouco tempo depois de Duez ter feito a aflitiva revelação que o R200 da Diabolique se tinha despistado, a prova foi interrompida e as ambulâncias começaram a entrar no troço da Lagoa Azul. “Duas, três, seis, doze… era evidente que o caso era mesmo lamentável (grave)”. A descrição do acidente surge em tom clínico e analítico na mesma publicação. Numa curva para a esquerda e a descer, Santos surge já em desequilíbrio. Segundo o piloto, este desequilíbrio terá sido causado por uma tentativa de poupar um espectador a embate com o Ford. Contudo, ao evitar uma possível tragédia, garantiu-se outra de dimensão ainda mais significativa.

 

Mesmo após 16 metros em travagem profunda, o RS200 – ainda longe de poder ser imobilizado sem consequências nefastas – apontou-se à estrada florestal da Barragem do Rio de Mula, uma tentativa por parte de Santos de evitar a massa de espectadores que preenchia o alcatrão. O piloto embateu então numa carrinha estacionada na berma e, seguidamente, no talude após passar por um grupo de assistentes, um dos quais acabou mesmo dentro do carro. O choque com a carrinha reclama a vida a dois espectadores, mãe e filho e o acidente acaba por ferir mais 31, vários dos quais em estado grave. Um jovem de 18 anos viria a falecer mais tarde, consequência dos ferimentos sofridos. Santos declarou que o RS200 não seguia a mais de 140 km/h a quando do incidente, mas que a presença da massa humana no alcatrão o impediu de corrigir a trajectória do RS200 para segurança.

 

O troço da Lagoa Azul tinha sido problemático desde o início do dia. Timo Salonen (Peugeot Talbot Sport) já protagonizara dois incidentes, o primeiro através de uma “traseirada” num operador de câmara de uma cadeia inglesa, a qual resultou numa perna fracturada e o segundo com nova “traseirada” num espectador que fora posteriormente transportado para o hospital de Cascais com ferimentos não especificados.

 

Walter Rohrl, ao ser informado do incidente com o RS200 de Joaquim Santos, declara que o Rally terminara naquele momento. Rohrl convoca uma reunião de emergência no Hotel Estoril Sol com os restantes pilotos e respectivos chefes de equipa. Da discussão que se seguiu, surge a conclusão essencial de que as condições para que se prosseguisse em segurança com a prova não estavam reunidas. Duas horas e meia após o início da reunião chegavam ao Estoril Sol César Torres, Presidente do ACP e Guy Goutard, Presidente da Comissão de Rallies da FISA. O encontro destes com os participantes durou pouco, surgindo depois um comunicado com as assinaturas de 22 pilotos no qual era expresso um boicote ao Rally de Portugal. Entre as assinaturas encontravam-se as de Stig Blomqvist (Ford), Juhan Kankkunen (Peugeot Talbot Sport), Miki Biasion (Martini Racing), Henri Toivonen (Martini Racing), Mikael Ericsson (Audi Sport) e Tony Pond (Austin Rover).

 

 

É interessante analisar a posição da imprensa automóvel nacional do período em relação ao incidente e resposta dos pilotos, em particular a da já anteriormente referenciada revista Auto mundo. A capa da edição de 19 de Março anunciava que o «Boicote de Pilotos não Azeda o “Vinho”», com um artigo no interior da publicação a mostrar-se claramente hostil à decisão dos pilotos, explorando a competitividade do WRC como condicionante à resposta maioritariamente unificada dos participantes e referindo que se Biasion (especialmente) tivesse continuado na competição, a Peugeot não permitira à Lancia ganhar pontos para mundial sozinha.

 

 

Joaquim Moutinho, piloto de um R5 Turbo, viria a classificar-se como vencedor da edição de 1986 do Rally de Portugal. Moutinho não estivera de acordo com os 22 do Estoril Sol e, como tal, não assinara o documento ou aderira ao boicote. Moutinho referira que muito público “assustava” os pilotos estrangeiros e que estas eram as estradas e a assistência a que estava acostumado; como tal, não se ausentara da competição apesar de se demonstrar “muito amargurado” pelo sucedido.

 

As etapas sucederam-se sem as grandes estrelas do período e todo o evento a partir do incidente em Sintra prosseguiu debaixo de uma nuvem negra. A classificação final reflecte claramente o espectro limitado das participações: o 1.º lugar ficaria então entregue à dupla Moutinho/Fortes em R5 Turbo (Renault Galp); a 2.ª posição viria a pertencer ao Lancia 037 de Bica e Júnior (Duriforte); e o 3.º lugar do pódio seria alcançado por Zoppo e Roggia com um Fiat Uno Turbo (Jolly Club).

 

 

O público português foi fortemente criticado após os acontecimentos de Março de 86. A Motor Sport Magazine (publicação inglesa) daquele mês apelidava o Rally de Portugal como “desastroso”. A revista aponta que a tragédia era anunciada, descrevendo o público nacional nos seguintes termos: “Os espectadores portugueses aparentam perder a sua individualidade, transformando-se numa massa unificada pulsante. Para eles não é suficiente assistir ao rally e testemunhar as mostras de perícia: eles querem tornar-se parte do evento. Não é um desporto para os pilotos, mas sim para eles e os pilotos só se encontram presentes para lhes providenciarem meios de exibirem coragem e de publicamente demonstrarem a sua habilidade em permanecerem de cabeça erguida quando apenas a centímetros da morte.”

 

A Motor Sport prossegue referindo que em vários locais sobrava apenas uma estreita tira de estrada para os automóveis passarem, que nas bermas se acumulavam pessoas debruçadas sobre o alcatrão e que era ponto de orgulho não se recolherem à segurança, merecendo aplausos os que conseguiam mesmo tocar os automóveis por uma fracção de segundo. Os fotógrafos amadores que saíam da frente dos pilotos no último momento possível merecem igualmente críticas da publicação. A Motor Sport critica ainda fortemente a organização do Rally, não apenas pelo que percepcionava como falhas na segurança mas também pela falta de cuidado na disposição de áreas para a assistência, mencionando que o trabalho dos copilotos era quase impossível pelo facto que todas as referências geográficas, todos os cruzamentos e bermas eram ofuscadas pelo público ao qual era permitido acumular-se em qualquer localização.

 

 

A publicação inglesa refere ainda que a decisão por parte dos pilotos de abandonar a prova também causou fúria tanto na organização do Rally como no público e que terão surgido no Estoril vários panfletos impressos em inglês, os quais proclamavam que os pilotos do boicote nunca mais seriam bem-vindos em Portugal. Reportadamente, algumas das equipas terão mesmo requisitado protecção policial devido ao receio de represálias.

 

Apesar das acentuadas – e à data, universais – críticas ao público português, é necessário colocar o comportamento deste em perspectiva. Havia de facto muito a condenar nas acções do público nacional, atitudes perigosíssimas e desnecessárias que se tornavam rotina e que, derradeiramente custaram vidas; contudo, Portugal não era nem a génese nem o único exemplo preocupante de maus comportamentos no WRC. Monte Carlo, Itália, Grécia, Córsega…as problemáticas eram comuns a todos os eventos realizados no Sul da Europa. Lembre-se que Rohrl ponderou desistência da carreira em Monte Carlo devido às acções do público naquela prova. No entanto, mesmo passados 33 anos, qualquer breve incursão pelos fóruns de rallies online é suficiente para constatar que a (má) fama de Portugal como o país cujo público “matou” a era dourada do WRC ainda se encontra solidamente alicerçada, mas há muito que se diga acerca das bases desta reputação e não se demora muito a encontrar uma série de considerações sociais estereotipadas e mesmo preconceituosas acerca de Portugal que a ajudam não só a manter viva, mas também a proliferar.

 

Em retrospectiva, é dolorosamente óbvio compreender que o Grupo B não poderia durar. Os automóveis cada vez mais rápidos eram simplesmente poderosos demais para o propósito a que se destinavam, impossíveis de conter em estreitíssimos troços repletos de público em êxtase descontrolado, uma massa humana desprovida de consideração pelo espectro de tragédia que pairava sobre cada troço.

 

O incidente que viria a ocorrer no Rally da Córsega em Maio de 1986 tornou-se no proverbial prego no caixão do Grupo B. Exactamente um ano após a morte de Attilio Bettega ao volante de um 037 Rally, no mesmo evento, Henri Toivonen e Sergio Cresto, seu copiloto, saem de estrada. O Delta S4 no qual seguiam cai numa ravina e incendeia-se; ambos os ocupantes do automóvel morrem no acidente. Chegava ao fim uma era irrepetível. O Grupo B viria a desaparecer no final do ano, prevalecendo daí em diante os regulamentos do Grupo A, entre os quais se encontrava a limitação dos motores a 300 cavalos.

 

 

É relevante lembrar que, embora o Grupo B tenha acabado, a herança que legou não se restringiu a meia dúzia de anos de competição memorável. Alguns dos automóveis do Grupo B transitaram para outras carreiras, eventos distintos do WRC mas não menos interessantes. O Audi Quattro S1 E2 por exemplo sairia vitorioso de Pikes Peak em 1987. Também em 87 e igualmente no ano seguinte, o Peugeot 205 T16 domina o exigente Paris-Dakar. Aliás, a Peugeot venceu a mesma prova em 1989 e 1990 com o 405 T16 que era, essencialmente, o 205 T16 sob um “disfarce”.

 

 

Os regulamentos do Grupo B também não cobriam unicamente rallies; há-que recordar que o conjunto de normas que a FIA acomodara nesta designação se aplicava a outras potenciais competições, nomeadamente eventos em circuito. Para tirar partido das possibilidades inerentes a este contexto prometedor, surgiram dois automóveis marcantes: o Ferrari 288 GTO e o Porsche 959. Embora o fim do Grupo B tenha ditado igualmente o fim dos planos iniciais da Ferrari e da Porsche para estes modelos, os mesmos permanecem como dois dos automóveis mais cobiçados de ambas as construtoras. O 288 GTO, embora tenha perdido a sua variante Evoluzione, tornou-se num dos mais apetecíveis modelos de estrada da marca italiana e o 959 não só se constituiu como o “halo car” por excelência para a Porsche, mas acabou igualmente por partir para o mundo da competição, vencendo o Paris-Dakar de 1986 e participando igualmente (sob a variante 961) nas 24 Horas de Le Mans, prova na qual tomou o primeiro lugar da classe e o sétimo da geral.

 

As particularidades que fizeram do Grupo B um campo tão fértil para a inovação acabaram por acarretar igualmente riscos que, quando se transformavam em consequências, eram simplesmente demasiado pesadas para serem aceitáveis. Contudo, à data, os perigos do Grupo B eram simplesmente vistos como ossos do ofício pela maioria dos pilotos. Em 2018, não resisti a colocar a questão – em retrospectiva, provavelmente inoportuna – a Miki Biasion e Stig Blomqvist: como era sair de uma curva cega ou descer de um salto e ver uma multidão a ocupar a estrada por completo? Como era possível balançar a necessidade de incutir um andamento o mais intenso possível com a preocupação de salvaguardar a segurança da assistência (e dos próprios pilotos)? Blomqvist, homem de poucas palavras, arregalou os olhos e com uma inspiração profunda transmitiu, apenas por expressão facial, a ideia que compreendi resumir-se a algo semelhante a “Nem eu sei…”. A esse ponto, Biasion tomou graciosamente as rédeas da questão e expressou que [parafraseio] não havia tempo para pensar, somente tempo de reagir. Que se durante uma classificativa a preocupação fosse constante, os pilotos não poderiam fazer o seu trabalho e a fixação nas possibilidades do que poderia correr mal levariam elas próprias a erros perigosos. Biasion prosseguiu referindo que, à data, lidar com o público era simplesmente a exigência de mais um dia no trabalho, uma inevitabilidade que se tornava norma e não excepção. Contudo, o piloto referiu que actualmente evita ver gravações dessa época porque lhe causam intensa ansiedade; ao assistir às mesmas, a inevitável ponderação acerca do quepoderia ter ocorrido naquelas circunstâncias desagrada ao afável piloto.

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