Arquivos • 20 Out 2023
Um tragédia nunca vem só. E, para além da romantização associada ao fenómeno Titanic, este evento marcou o mundo de forma inquestionável. Ainda antes da sua viagem inaugural, o Titanic era já um sucesso. No período áureo das linhas transatlânticas, onde a aviação era apenas uma curiosidade extravagante, várias companhias de navegação competiam pela supremacia dos oceanos!
À data, os navios eram provavelmente o expoente máximo da capacidade desta civilização humana. Eram, pois, o único meio de transporte de pessoas, bens, divisas e sonhos sobre o vasto oceano, conectando continentes. Longe de qualquer previsão negativa, o Titanic recebeu grande afluência de passageiros, que levavam as suas famílias rumo ao sonho americano, que regressavam de negócios, de ferias, etc. Um desses abastados passageiros, era William Carter of Bryn Mawr, dono de uma fortuna considerável, oriunda da exploração de carvão e ferro. Este, viajava junto da sua esposa e dois filhos pela Europa. Nesta mesma viagem, William adquiriu um automóvel muito especial, e logo tratou de o trazer consigo para o novo mundo. O automóvel outrora moderno, é hoje um clássico, e trata-se do requintado Renault 1912 Type CB Coupé de Ville.
Possivelmente encantado com as linhas desportivas, o seu feliz proprietário tinha à sua disposição um exemplar da bela indústria automobilística europeia. Equipado com um motor de 2,6 litros, este clássico era categorizado na potência fiscal francesa como 12 cv, tendo portanto qualquer coisa como 25-30 cv e a capacidade de alcançar os 50 km/h. Dentro de algumas curiosidades sobre o carro, consta que o radiador se encontrava atrás do motor, permitindo um design mais inovador e assim conferindo à frente do automóvel um aspecto mais desportivo. Outra especificidade, prendia-se com a transmissão às rodas traseiras, visto que ao contrário da tradicional correia ou corrente, o Renault possuía já um veio de transmissão. Pese embora o facto de se designar por coupé e ter linhas em consonância, este clássico respeitava a longa tradição aristocrática, sendo portanto conduzido por um chauffeur, sendo este mesmo, de nome Augustus Aldworth, o ultimo a conduzir a viatura, aquando da deslocação para o porto de Southampton, de onde partiram para a viagem transatlântica. Infelizmente, e como uma tragédia nunca vem só, o Coupé de Ville acabou por desaparecer na imensidão do oceano, sendo sepultado juntamente com o Titanic a uns respeitosos quatro quilómetros de profundidade.
Semelhante clássico foi presenteado e leilão, pela conceituada RM Sotheby’s em 2008, atingindo a fasquia dos 269.500 mil dólares, conferindo a este modelo, um estatuto de importância considerável. Tudo isto suscita imediatamente a pergunta irracional e inocente, «e se»?
E se, fosse recuperado do fundo do oceano como tantos outros artefactos? Quanto valeria? De alguma forma, a natureza pouco sintética dos seus materiais suscita duvidas sobre a sua condição, sendo que, várias tentativas foram já realizadas para tentar perceber o seu estado de conservação.
Uma equipa parece ter conseguido uma foto parcial de uma roda e um pára-choques, mas sem identificação possível. Durante muitas décadas esta história repousou, sendo apenas ressuscitada quando por ocasião das filmagens do filme Titanic, que estreou em 1997, foi revisto o manifesto de carga do navio. Este facto, juntamente com o pedido de indemnização que o dono fez à White Star Line, dona do Titanic, no valor de 5 mil dólares, dão credibilidade à presença do automóvel nos escombros no Titanic.
Com alguma sorte e saber, William Carter, após garantir a segurança da sua esposa e dois filhos abordo de um bote, vagueou pelo Titanic, onde acabou, também ele, por embarcar num bote salva vidas mais perto do fim, juntamente com Bruce Ismay, director da W.S. Line. Salvando-se assim de uma morte certa a cargo das águas gélidas do Atlântico, a mesma sorte não teve o chauffeur que, junto com o Renault, desapareceu sem deixar rasto, na história trágica que marcou o afundamento da embarcação que todos julgavam inafundável.
A presença do Renault como parte integrante do filme, pode ter acrescido valor ao já elegante automóvel, sendo que pode ser apreciado logo no início, sendo carregado no porão dianteiro. Embora esta cena passe despercebida no frenesim do porto e da corrida para entrar no barco dos sonhos, há também a reputada cena onde DiCaprio e Kate Winslet partilham o protagonismo com o próprio Coupé de Ville. A cena imortalizada pelos vidros embaciados, junta estas três estrelas num momento de descontracção e alguma sensualidade. Embora não haja nenhuma fotografia do automóvel que embarcou em 1912 rumo a nova York, ficará para sempre, nas nossas memorias, a imagem do vermelho vivo e da paixão que nele foi consumada.