Clássicos • 27 Mar 2015
ACP apela a que os clássicos saiam de casa no “Drive it Day”
Por Pedro Fernandes
Os automóveis garantem, frequentemente, lugar de destaque na história de uma família. O fenómeno não é de desafiante compreensão pois, ao longo do tempo, estes afirmam-se não apenas como elementos meramente utilitários, mas também como repositórios de memórias e promotores de convívio e proximidade, acabando por se tornarem verdadeiros membros honorários do agregado familiar. Tal foi o caso com a família Borba e o seu Hupmobile Modelo S sedan de 1930.
Há alguns meses, tive oportunidade de visitar o Engenheiro Francisco Moniz Borba, assumido aficionado dos clássicos (com um lugar especial no coração reservado à Porsche) e ex-proprietário do Mercedes-Benz 300SL “Gullwing” vencedor do Rallye Ibérico de 1956, automóvel que lhe fomenta as maiores saudades. Durante um tour à sua coleção de veículos, numa das dependências da propriedade, encontrámo-nos perante um imponente automóvel aninhado a um canto e cercado por grades dispostas para sua proteção, de modo a que alguma maquinaria agrícola mais liberalmente manobrada não lhe cause, acidentalmente, danos. O emigrante oriundo dos inícios da era dourada da Motor City não esconde a idade e muito menos as profundas marcas das já longas décadas de vida; contudo e apesar disso, permanece estóico, quase monumental, como se encerasse na sua essência a certeza absoluta de um futuro digno.
O proprietário informou-me que o Hupmobile de 1930 era o automóvel de seu avô, Francisco de Paula Borba, o qual permanece como uma das figuras mais reconhecíveis da história setubalense do final do século XIX e início do século XX. Natural de Angra do Heroísmo, Licenciado em Medicina em Lisboa, Francisco de Paula Borba viria a estabelecer-se em Setúbal, destacando-se nessa cidade como clínico e filantropo. A um de Setembro de 1930, o Doutor Paula Borba adquire o Hupmobile Modelo S ao stand de Agostinho Rios d’Oliveira & Ca. na Avenida da Liberdade, representante das marcas Hupmobile e White. O recibo da compra indica que o automóvel custou 48 mil escudos, tendo sido encomendado «com carroçaria fechada “sedan” de quatro portas, modelo seis cilindros com rodas de arame, duas de reserva dos lados».
A Hupp Motor Car Company foi uma das companhias nascida e extinta no boom automóvel do início do século passado, tendo sido fundada em 1909 por Robert Hupp e Charles Hastings. O Hupmobile Modelo S foi produzido entre 1930 e 1932 nas variantes coupé, sedan e phaeton, não sendo no entanto claros quais os totais de produção deste ou dos restantes modelos da companhia; apesar da ausência de informação concreta, o facto é que, em comparação com os grandes fabricantes de Detroit, os poucos milhares de unidades que saíam da linha da Hupp não constituíam volume suficiente para o vingar da Hupp Motor Car Company a longo prazo. Apesar de, a partir de 1932, a construtora ter apostado em novos modelos definidos por linhas dramáticas da autoria do lendário designer industrial Raymond Lowery, em 1939 a Hupp já se encontrava em queda livre para a falência.
Francisco de Paula Borba viria a falecer em 1934; até então, o Modelo S teria sido utilizado primeiramente para viagens a São Martinho do Porto e Elvas, onde o Doutor Paula Borba possuía propriedades, assim como para passeios na região de Setúbal. O automóvel seria subsequentemente herdado por João Botelho Moniz Borba, filho do proprietário. Este mantinha registos extremamente detalhados acerca do Hupmobile e dos restantes automóveis da família; a primeira referência por parte do Engenheiro João Borba acerca do Modelo S data de 1936. Então, o automóvel contava com pouco mais de 41.000 quilómetros, envergando ainda a matrícula original (S-22938), a qual só viria a ser atualizada para a configuração de duas letras e quatro algarismos em 1950. Os registos de João Borba englobam apontamentos diários e mensais para cada uma das viaturas que conduzia, de modo a poder realizar, no final de cada ano, um resumo estatístico das distâncias percorridas e dos gastos em combustível. Esta documentação, ainda existente, termina em 1939 para o Hupmobile. Nesse ano, o automóvel deslocou-se pouco mais de 2.000 quilómetros, tendo alcançado a…impressionante…média de 19,66 litros aos 100km, sendo esta bastante superior às dos restantes automóveis da família Moniz Borba.
A partir de 1940, o Hupmobile foi parqueado onde permaneceu até ao pós-Revoução dos Cravos. As mudanças colocadas em marcha pelo 25 de Abril ditaram a ocupação da propriedade onde o automóvel se encontrava, forçando a permanência deste (e outros) no local até ser dada autorização para a retirada dos mesmos. Daí, viajaram para o jardim da residência da família Borba em Setúbal onde permaneceriam expostos aos elementos, por falta de infraestrutura conveniente à sua conservação, entrando em processo lento de degradação.
Em 1977, falece o Engenheiro João Moniz Borba, constituindo então terceiro proprietário do Modelo S, o acima referido Francisco Moniz Borba, seu filho. Sendo visível da rua, o Hupmobile chama a atenção de um cidadão britânico residente em Portugal, o qual entra em contato com o neto do Doutor Paula Borba com a intenção de adquirir o automóvel. Francisco Borba encontrou-se então, uma vez mais (como fora anteriormente o caso com o 300SL, embora por imperativo diferente), confrontado com o prospeto de uma venda não desejada, mas necessária. Impossibilitado de conservar o automóvel do modo “como merecia” – palavras do proprietário – acabou por ceder e concretizar o negócio. Após quase meio século com os Borba, o Hupmobile partiu para uma nova residência. Por lá ficou, por aproximadamente quatro décadas.
Há cerca de quatro anos, Francisco Borba recebeu um telefonema do comprador do Hupmobile; este tinha intenção de vender o automóvel, mas não o desejava fazer sem primeiro informar o antigo proprietário. Inquirindo acerca da condição do Modelo S, Francisco foi informado que o automóvel do avô se encontrava “um pouco deteriorado” por ter estado “ao tempo”. Pouco depois da aquisição, o comprador britânico perdera uma série de documentos no seguimento de um assalto, entre os quais o livrete do Hupmobile. A situação nunca fora regularizada e, aparentemente, o automóvel acabou por permanecer estático e em contínua degradação ao longo dos anos.
Francisco Borba deu conhecimento da situação aos três filhos. Juntos, deliberaram que, existindo a possibilidade, o Hupmobile deveria regressar à família. Contudo, primeiro era necessário apurar a realidade da condição atual do automóvel; para tal, Pedro, um dos filhos de Francisco, foi confiado com a missão de se deslocar ao Alentejo (onde o Hupmobile se encontrava) e reportar sobre a situação. As notícias que transmitiu após a primeira visita não foram animadoras. Pedro Borba refere então ao pai que este se deveria “preparar para o pior”, pois a condição do automóvel era “lastimável”.
A exposição aos elementos levara o Hupmobile à beira da ruína, com o apodrecimento das madeiras, borrachas e de todo o material que compunha o interior. Francisco Borba descreveu-me sucintamente o estado do Modelo S, à data, como parecendo “um galinheiro”. No entanto e apesar da dura realidade, o apelo emocional do automóvel do avô/bisavô foi demasiado forte para ignorar por parte dos Borba e, tendo sido negociada a compra, o Hupmobile regressou a casa.
Após uma primeira limpeza urgente, procedeu-se ao inventário dos caixotes de peças que acompanharam o automóvel; surpreendentemente, todos os elementos se encontravam presentes, desde os faróis aos puxadores das portas. Também a condição da chapa se revelou uma agradável surpresa, tendo conseguido evadir-se à ferrugem séria, acumulando apenas a de superfície.
Correntemente, o Hupmobile Modelo S de 1930 aguarda o inevitavelmente dispendioso mas necessário processo de restauro. Francisco crê-o “sorridente por ter voltado casa” e “pacientemente (ou impacientemente, quem sabe)” a aguardar a escrita de uma nova página da sua história.
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