Arquivos • 14 Ago 2014
Uma das miniaturas que tive, em criança, e que mais me intrigou, foi a de um Citroën SM produzida pela Mont Blanc. Na altura, ainda não tinha visto nenhum ao vivo, e o facto de não conhecer o modelo só me acicatou a curiosidade. Com um design muito fora do vulgar e uma elegância extrema – muito longe dos produtos ditos normais da marca, o SM estava praticamente isolado no mercado. Para já posicionava-se no sector de prestígio, algo anormal para a Citroën, depois as referidas linhas eram de uma modernidade sem paralelo…em 1970!
Mas qual o porquê do SM? Segundo alguns especialistas da marca, duas ideias principais levaram a que tal acontecesse. A primeira foi reviver as criações do período entre as duas guerras mundiais de marcas como a Bugatti, Delage e Voisin. Refira-se que na altura França era o país produtor de automóveis de prestígio por excelência. Ao mesmo tempo, colmatar o desaparecimento da Facel-Vega. A segunda, trazer o conceito do DS de 1955 para os anos de 1970. Embora o DS fosse em tudo revolucionário, em 1955, o factor novidade começava a perder força.
O célebre plano de dotar o DS com um seis cilindros opostos nunca se materializou. A princípio por falta de meios, mas depois outros projectos foram surgindo, remetendo este, de um modo definitivo, ao esquecimento.
Em 1968, a Citroën adquire uma parte importante da Maserati e obtém acesso ao know-how de produção de motores de altas performances do fabricante italiano. A ideia da Maserati produzir um motor condizente com o Projecto S, que começava a dar os primeiros passos, foi rapidamente posta em prática. Giulio Alfieri concebeu um novo V6, a partir do equipamento usado para produzir o V8 da marca transalpina, onde a principal exigência era manter a cilindrada abaixo dos 2700 cc, visando uma classificação amigável de 15 cv de potência fiscal, característica importante para o mercado francês. A cambota foi modificada, para possibilitar a alteração do curso de 85 para 75 mm. O diâmetro foi reduzido em 1 mm, o que trouxe a capacidade total para uns simpáticos 2670 cc.
O V6 era sofisticado, não fosse a Maserati um construtor de exóticos. Integralmente construído em alumínio, com quatro veios de excêntricos à cabeça e com um peso de somente 140 Kg, este motor era excepcionalmente leve.
Em conceito, este V6 era o V8 com menos dois cilindros, mas acabou por ser, na prática, um motor completamente novo. O caderno de encargos seria desenvolver para produção um motor capaz de 150 cv em seis meses. Alfieri conseguiu 200 cv, dependendo do perfil dos veios de excêntricos, em três semanas! Com especificação de produção, o V6 produzia 170 cv às 5500 rpm e 230 Nm às 4000 rpm, com três carburadores duplos Weber 42 DCNF2. A partir de 1973, passaria a ser equipado com injecção electrónica Bosch, com um aumento de potência para 178 cv ao mesmo regime, mantendo-se o valor máximo de binário muito semelhante, embora com uma curva mais plana, mais bem distribuído pela gama de rotações disponível.
Quanto ao resto do SM, uma mistura de tecnologia do DS e algumas inovações ou refinamentos foram planeados e executados. De qualquer maneira, o DS era de tal modo avançado que o SM estaria, no mínimo, com um avanço de 20 anos em relação à concorrência. A suspensão foi refinada, com um aumento de assistência do sistema hidráulico, bem como o funcionamento que é automático em função da velocidade, assim como o sistema de travagem, que passou a ser de quatro discos.
A direcção foi a principal inovação: com somente duas voltas entre extremos, assistência variável dependente da velocidade e auto-centrante, esta característica hidraulicamente assistida, mesmo com o automóvel parado. Embora os dois primeiros atributos não pareçam muito inovadores actualmente, recorde-se que em 1970 eram novidades absolutas. Além de tudo, o volante é regulável, tanto em altura como em profundidade. Tinha ainda mais duas características muito interessantes: sensores de chuva, o que tornava o accionamento dos limpa pára-brisas automático, mas, quanto a mim o detalhe mais curioso e que ainda ninguém oferece, mesmo hoje, nada semelhante… jantes opcionais em resina reforçada com carbono! Muito leves, com 4,66 Kg por unidade (as jantes normais pesam 10,37 Kg) eram consideradas pela marca como perfeitamente capazes de resistir às mais fortes solicitações. Refira-se que o SM que venceu o Rally de Marrocos, em 1971, estava equipado com estas.
Desenhado por Robert Opron (o nome pode parecer familiar para alguns… Citroën CX, Alfa Romeo SZ), o SM não deixa ninguém indiferente… ama-se ou odeia-se. De dimensões imponentes, foi considerado o maior 2+2 construído até então, ainda hoje julgo que seja. O perfil é de uma elegância muito invulgar. O capot longo, a linha de tejadilho baixa, conjugada pela grandiosa janela traseira e pela frente de seis faróis, onde o par interior se move com a direcção, completamente envidraçada e a deixar evidenciar o cuidado aerodinâmico posto na concepção. A juntar a isto, os flancos inclinados e cortados e a diferença de largura da via dianteira para a traseira, a perseguir o formato de gota de água, conferem ao SM um coeficiente aerodinâmico de 0.34, este igualado por um certo Ford Sierra… em 1983!
Nos primeiros testes na imprensa especializada, o SM fez aparecer novos superlativos, tal era a novidade da experiência, níveis de estabilidade nunca vistos, uma capacidade de mudar de direcção desarmante, combinados com uma direcção e travões com uma capacidade de resposta nunca vista…ou sentida.
O sistema de direcção era de tal modo novidade que enganava os road-testers da altura, dando a sensação de ter um comportamento de desportivo, quando na realidade estava mais perto do DS do que seria de supor. O rácio de desmultiplicação desta, aliado ao feeling, artificialmente induzido (algo que se tornou norma), fazia com que a direcção contasse uma história ligeiramente diferente da realidade.
No entanto, o SM nunca pretendeu ser um desportivo hardcore. Como GT é excelente e a diferença para os automóveis da época é a compostura. De um conforto talvez superior a um Bentley, o SM não balança como é típico de suspensões orientadas para o conforto. Comparado com a oposição, tinha bastante menos potência, no entanto, graças ao chassis, e aerodinâmica, mais desenvolvidos e refinados, era possível manter velocidades de rolamento muito elevadas. Com um 0-100 km/h de uns não-impressionantes nove segundos mas com uma velocidade de ponta, e esta sim, impressionante para a época, de 230 km/h, o SM era o rei da autoroute… e também da autobahn.
O maior problema foi o timing de lançamento do SM. É o caso típico de um produto demasiado avançado para o mercado. Os compradores, ou uma grande parte deles, não percebeu o conceito o que se traduziu por uma reacção morna. O facto de a crise petrolífera fazer sentir os seus efeitos em 1973 não ajudou também. Depois, a reputação de problemático e complicado, onde o obstáculo seria, talvez, a conjugação de um construtor de automóveis generalista com um construtor de exóticos, o que obrigava a cuidados específicos na assistência do motor, leia-se manutenção mais cara e especializada. Ainda hoje o caso persiste em produções mais específicas (Mercedes AMG, BMW M-series, Audi RS), imagine-se no princípio dos anos de 1970!
Com a evolução dos materiais, muitas das lacunas do SM foram colmatadas. A distribuição, talvez o item mais problemático, sendo substituída por uma fabricada hoje dura de três a quatro vezes mais. Há uma serie de modificações, que foram desenvolvidas ao longo dos anos, que beneficiam largamente o motor, como a substituição das válvulas de escape originais, de haste oca, o calcanhar de Aquiles do V6 Maserati, por novas, maciças, juntamente com o uso de lubrificantes de maior qualidade fazem este motor ter uma expectativa de vida e ciclos de manutenção muito próximos dos motores actuais.
Tudo muito bem, mas o essencial persiste…passados quase 50 anos do seu lançamento, qual será o seu efeito num entusiasta? Bom, o que posso dizer é que, como experiência o SM é algo a ser vivido urgentemente. Longe de qualquer produção actual e muito mais de produções passadas, este Citroen consegue fazer coisas que ainda hoje espantam muita gente, eu incluído.
É daqueles casos em que, por ser tão diferente, toda a experiência é envolvida numa sensação de novidade. Sendo um GT já estamos à espera de um bom comportamento, uma boa dose de conforto e refinamento a bordo, enfim, tudo muito vocacionado para viagens transcontinentais. O que não estamos à espera é do “como”.
A compostura a direito é irreal. Nunca a expressão “tapete voador” fez tanto sentido. Sentimo-nos completamente isolados do mundo exterior e de coisas mais banais como ondulações do pavimento e algum piso mais degradado. No entanto, quando se fala de suspensões confortáveis há sempre aquela ideia de automóveis bamboleantes, quase com vontade própria. Nada disso se passa aqui. Chegado às curvas, o SM permite uma inserção precisa, embora tenha a sua técnica própria. Quando se vira o volante, temos de lhe dar uma fracção de segundo, bom, na realidade é quase imediato, para a carroçaria adornar, como que a assumir a posição de ataque e assumir o ângulo de adorno ideal. É muito rápido e quase imperceptível. Estando nesta posição, damos-lhe potência e, quase que por magia, o SM desenha a curva de saída o quanto veementemente o propulsor permite.
A diferença de largura entre as vias dianteira e a traseira permitem-lhe ainda outro truque. Em curvas mais apertadas, a frente é muito incisiva, enquanto a traseira desliza muito suavemente, ajudando a manter a trajectória. Tudo muito adulto, muito tranquilo… muito sofisticado!
Diga-se de passagem que embora o motor seja uma jóia per se, o peso do automóvel (1500 Kg) não lhe permite um grande brilhantismo. Não é fulgurante, como se poderia esperar de um motor com este pedigree, mas sim adequado.
A simbiose quase perfeita entre o propulsor, a direcção e a suspensão, onde a razão de ser do SM vai para as duas últimas, dão-lhe uma agilidade que as dimensões não fariam supor. Mas é daqueles automóveis imediatos, que se conduzem logo mal nos sentámos ao volante? Não… requer um reset que demora algum tempo, embora arriscasse a afirmação que é mais fácil hoje do que há 40 anos. Por uma razão muito simples: estamos mais habituados a mudanças de direcção mais bruscas, direcções mais directas, enfim… automóveis com capacidades superiores aos que existiam em 1970. Percebe-se o espanto dos road-testers da época!
Com as mãos no volante na posição clássica das “10 e 10” raramente precisamos de as mover. Para 90% das situações em estrada, o SM só requer um quarto de volta no volante, a maior parte das vezes nem isso. Não pensar sequer em aliviar o volante, ao desfazer as curvas. Precisamos é de segurá-lo para atenuar o efeito auto-centrante deste, tal a força do sistema. Ahh… e nem pensar em conduzi-lo só com uma mão: o peso desta faz virar o volante, pelo que temos que compensar continuamente, tornando o exercício menos relaxante do que conduzir com as duas, como deve ser…
O interior é muito moderno, ainda pelos padrões actuais. Os bancos são autênticos exercícios de design, confortáveis e com boa regulação. O volante, de um raio e regulável em altura e profundidade, tem o diâmetro e mais importante, o toque perfeito para um automóvel com estas características. Mas o que domina o interior é a alavanca da caixa de velocidades. Esteticamente perfeita, o accionamento é uma agradável surpresa. Com um tacto muito mecânico, dir-se-ia que actua directamente na caixa, o que não podia estar mais longe da verdade. A caixa está na frente do motor, pelo que é admirável consegui-lo com tirantes de um comprimento considerável.
Em suma, o SM ainda hoje é impressionante, tal a qualidade e inovação que introduziu aquando do seu lançamento. Um GT tranquilo, sofisticado como nenhum na sua época, esquisito… uma loucura fabulosa. Se olharmos para trás e para tudo o que foi feito até agora, não encontro rival, nem se vislumbra nos tempos tão próximos, o lançamento de algo tão diferente da oferta como foi o SM. Hoje em dia, a norma é lançar uma inovação, talvez duas num determinado modelo, nunca tantas e sistemas revolucionários num só modelo. Foi preciso uma grande dose de coragem da parte da Citroen para tal feito… O mercado não reagiu como esperado e as consequências foram quase desastrosas, mas ainda bem que o fizeram!