Arquivos • 14 Out 2018
Arquivos • 19 Ago 2023
Seat Ibiza: A pretensão de conquistar o Grupo B com um Bimotor
Por José Brito
O Seat Ibiza foi, desde a sua criação, uma excelente base para afirmação de um modelo do segmento no mercado. Com o passar dos anos a tomada de consciência da importância desde modelo na implementação da Seat como algo mais que um adaptador de modelos Fiat tornou-se cada vez mais vincada, não faltando exemplos de variantes do mesmo que, para além de satisfazerem o fim mais mundano de um qualquer automóvel, proporcionam um sorriso de orelha a orelha a quem vê o automóvel sob outro prisma, o que possibilitou que com o passar dos anos o Ibiza se afirmasse como recordista de vendas não só no país vizinho, como a nível europeu. O presente artigo focalizará não a supramencionada desvinculação da Seat para com a Fiat, nem a evolução do Ibiza de modelo pioneiro a veículo de segmento C com vincada posição de mercado, mas antes uma versão muito especial da primeira geração do Ibiza, na qual a mentalidade “Win on Sunday, sell on Monday” terá certamente ecoado na mente dos responsáveis da marca espanhola, não havendo na década de 80 melhor palco de mostras que o Mundial de Rally.
Por esta altura a Seat já se encontrava imiscuída em troféus monomarca com o Seat Panda e o Seat Fura Crono, mas a saída do Grupo Fiat aliada à instabilidade financeira e política em Espanha afectariam a indústria de tal forma que a Seat teria de enveredar por um projecto singular e de risco. A conjunção desta situação com a procura de entrada da Volkswagen no mercado espanhol proporcionaram a aquisição de capital por parte dos alemães, o que permitiria a entrada de uma forma mais facilitada no mercado espanhol, assim como assentiria o acesso da Seat à ampla rede de concessionários da Volkswagen. É neste ambiente que é lançado o Seat Ibiza, que apesar de coincidir com o Fura nos seus últimos anos de fabricação, era considerado como o substituto deste.
Seria com base no supramencionado propósito e modelo que em 1985 é criado o Ibiza Bimotor. À primeira vista a atenção recai para a estética: um Ibiza claramente dotado de painéis distintos dos das versões de estrada e com um aileron traseiro bem pronunciado, carroçaria desenhada pela Italdesign (com inspiração no que seriam os esboços iniciais para o futuro Volkswagen Golf) e fabricada pela Karmann. Todavia, e como a designação deixa antever, o destaque iria para a mecânica, com a particularidade de possuir como sistema de propulsão não um, mas dois motores de 1,5 litros desenhados pela Porsche, cada um responsável por potenciar um eixo (à semelhança do VW Golf Bimotor, de desenvolvimento posterior). A cada motor estaria acoplada uma caixa de velocidades e uma embraiagem, ideia vinda da mente dos irmãos Servià e do precioso auxílio do seu mecânico de confiança Vicenç Aguilera, que, compreendendo a clara vantagem na utilização de tracção às quatro rodas, entendia que os custos de desenvolvimento de um sistema de tracção integral de raiz eram demasiado elevados. A cada eixo estaria também aplicado um antiblocante.
Este foi um dos aspectos que tornou o Ibiza desta geração famoso, a implementação de um conjunto motor-caixa de velocidades com cunho da Porsche, quer para competição, quer para as versões de venda ao público (neste caso com aplicação de único motor). De série cada um dos motores disponibilizava cerca de 80 cavalos de potência, mas graças às alterações providenciadas pela equipa de projecto com enfase nas árvores de cames, sistema de abertura de válvulas, sistema de duplo carburador e aumento de taxa de compressão, cada motor passou a debitar uma potência declarada de 125 cavalos de potência, tornando a do conjunto num significativo valor de 250.
Ao nível de interior, reina o já esperado minimalismo, com enfase para os mostradores, multiplicados pelo número de motores, e para a aplicação de kevlar.
Já estruturalmente, o Bimotor foi alterado de forma significativa, resultando, na realidade, da união de duas porções frontais do Ibiza 1.5, com adaptação de suspensões McPherson superiores às de série e adaptação de componentes como o capô, a porção traseira da carroçaria e os painéis laterais em vibra de vidro. Nesta procura pelo menor peso possível, o Ibiza Bimotor alcançava pouco mais de uma tonelada.
Apesar de testes iniciais bastante promissores, com o desenvolvimento do projecto foi possível a determinação de inúmeros problemas. Um deles, talvez o mais evidente, prendia-se com o sistema de refrigeração, de extrema complexidade pelo método de propulsão escolhido, mas solucionável pela adaptação de entradas de ar laterais na carroçaria. Para além disto, a sincronização entre as duas caixas de velocidades e os dois motores representava uma complicação adicional pela utilização de um único pedal de acelerador e um único pedal de embraiagem sem significativo desenvolvimento tecnológico à altura, sendo que, por inércia, o motor dianteiro rodava entre 1500 a 2000 rotações por minuto acima do traseiro.
O conceito inovador da Seat nunca chegou a experienciar o mundial de rally. A ideia inicial do constructor espanhol de competir com o Ibiza Bimotor no afamado Grupo B foi travada pela extinção do mesmo, sendo que o ponderado Grupo S sofreria igual destino.
Restava à marca espanhola procurar implementar o Bimotor em ralis locais, ao caso no Campeonato Espanhol de Ralis de Terra, em que chegou a participar nas temporadas de 1987 e 1988 com dois automóveis, um aos comandos de José Maria Servià e o restante aos de Toni Rius. Durante estas temporadas, e mesmo frente aos Ford RS200 e Lancia Delta S4 (vencedor das duas edições anteriores com Gustavo Trelles), o Ibiza Bimotor era capaz de lograr pódios de forma constante, com Rius a terminar o Rallye de Soria de 1987 em 2º e Servià o Rallye de Madrid na mesma posição, tendo como ponto estelar da temporada uma dobradinha Servià-Rius no Rallye de Ávila.
Contudo, e com o aumento de potência para valores constantemente a rondar os 300 cavalos de potência, a versão mais memorável do Ibiza Bimotor surgiria em 1988, ano em que Servià ganharia a prova inaugural em Lloret de Mar, alcançaria o 3º lugar no Rallye Costa Cálida e no Rallye de Toledo, e o 4º posto no Rallye de La Rioja e no Rallye de Aviles, com um 5º lugar a ser alcançado em Balaguer, disputando o titulo com Trelles e Zanini durante toda a temporada, titulo esse perdido pela desistência no Rallye de Madrid.
Actualmente, o exemplar em melhor estado de preservação encontra-se no museu da marca, tendo marcado uma presença algo recente no Goodwood Festival of Speed de 2011.
Numa fase final do desenvolvimento do Bimotor, a Seat voltou atenções para competições de todo-o-terreno, como o Paris-Dakar, desenvolvendo o Ibiza Marathon Concept. Incluiria um chassis de construção tubular e carroçaria de compósitos leves com recurso a um motor Audi V8 de 300 cavalos de potência com tracção às quatro rodas. O Ibiza Marathon Concept acabaria por nunca se materializar, mas serviria como base para o Toledo Marathon de 1992, conduzido habilmente pelos irmãos Servià.
Será importante referir que outros fabricantes, nomeadamente a Mini, a Citroen, a Volkswagen (com o supramencionado Golf Bimotor) e a Abarth procuraram implementar soluções de propulsão com duplo motor. Logicamente que do ponto de vista da produção em série a ideia sofre de uma materialização infundada, sendo que ao nível do desporto motorizado, e como a história mais tarde demonstraria, a fiabilidade destes sistemas simplesmente não alcançava o nível desejado, devendo aditar-se a dificuldade acrescida de monitorização para o piloto. Porém, a implementação de um sistema bimotor não deixa de ser, em si, um feito de Engenharia que toma um valor de sobremaneira acrescido pela procura da sua implementação há 35 anos atrás.
Também existiram uns projetos destes nos anos 80 e 90 no autocross e ralicross que foram desde Subarus (dois), Peugeot 205, 309 e 306 bimotores. Seria interessante divulgarem o que de bom foi feito em Portugal.