O casaco do Avô

LifeStyle 10 Jun 2023

O casaco do Avô

Por Marcos Santos

Miguel era um jovem de 25 anos, alto, loiro e mais parecia alemão do que português.

 

Adorava automóveis, corridas, mecânica e automobilia. Ele próprio era engenheiro mecânico de formação, influenciado pelas suas raízes e por toda a história da sua família, desde sempre ligada aos automóveis.

 

Coleccionava miniaturas, ferramentas, peças de roupa usadas outrora por mecânicos de corridas. Fatos, luvas, bonés, casacos, entre outros.

 

A peça mais rara era um casaco da equipa Porsche, que herdou do seu avô Dieter Hersh, mecânico da marca alemã nos anos 60 e 70.

 

 

Quando Miguel nasceu, o seu Avô já não estava entre os mortais, mas a sua memória era constantemente avivada pelo seu pai, que já havia nascido português e com orgulho contava a vez que o Avô Dieter foi campeão em Le Mans, logo na primeira vez em que a Porsche ganhou a mítica corrida, em 1970.

 

O Avô Dieter era a referência máxima da família. Alemão, excelente profissional, óptimo contador de histórias e um herói do mundo automóvel, pela sua experiência no mundo das corridas, sempre ligado à marca Porsche.

 

O ano em que fazia 25 anos coincidia com o centenário da mítica corrida.

 

Era a altura certa para visitar Le Mans, e tentar reviver momentos como os do filme “Le Mans 66: O Duelo”.

 

Miguel queria muito ver a corrida e sentir toda aquela energia, tantas vezes descrita pelo seu Pai, que teve várias oportunidades de acompanhar o Avô Dieter, mas logo percebeu que ia ser muito difícil encontrar bilhetes.

 

Ia ser um evento muito procurado por todos os aficcionados.

 

Tentou convencer dois amigos a acompanhá-lo, mas sem sucesso.

 

Lá teria que se aventurar sozinho, achava ele, até ao momento em que o Pai lhe disse que tinha contactado um velho amigo e colega do Avô, e havia a forte possibilidade de conseguir bilhetes.

 

Mas, forte possibilidade não é certeza, pensou o Miguel.

 

“Não interessa, vamos!” – disse o pai.

 

“E vamos no tesouro da família!” – disse o pai, com entusiasmo.

 

O velho, mas imaculado Porsche 356B, vermelho. Mais uma herança do Avô Dieter.

 

“Será que chegamos lá?” – perguntou Miguel, que apesar de ser fã de automóveis clássicos, tinha os seus receios e, em bom rigor, não queria estragar a sua futura herança.

 

“Claro que sim!” – respondeu convictamente o pai.

 

Chegado o dia, arrancaram rumo a Le Mans. Cerca de 1400 kms, em 15 horas de condução, dizia a aplicação de navegação.

 

Miguel apresentou-se junto do Pai, envergando o velho, mas imaculado casaco verde claro com o símbolo da Porsche ao peito, assinado por Hans Hermann e Richard Atwood. O velho casaco do seu avô Dieter, o seu herói de Le Mans.

 

A viagem foi feita por etapas, em amena conversa e em pleno programa de Pai e filho, de forma a chegar dois dias antes da corrida.

 

Chegados a casa do amigo do avô Dieter, o francês Jean Luc, viram-se confrontados com uma má notícia. Só havia conseguido um bilhete.

 

“Não faz mal, vais tu!” – disse o Pai.

 

“Nem pensar, Pai. Vais tu! Tento para o ano” – disse o Miguel!

 

“Em Le Mans costumam ocorrer coisas extraordinárias! Não percas a esperança. Seja como for, a vida à volta da pista é fantástica. Mantém-te por perto!” – disse Jean Luc no seu português aveludado a francês, dos tempos em que visitou o avô Dieter e das viagens em férias ao nosso Portugal solarengo.

 

Chegou o dia da prova. O centenário Le Mans. 100 anos das 24 horas de Le Mans, ali, tão perto e o Miguel sem poder viver por dentro por causa de um bilhete.

 

Com uma tristeza disfarçada, viu o seu pai a entrar com o Jean Luc, que tinha um “free pass”. O objectivo do francês era encontrar uma forma de conseguir fazer entrar o Miguel, embora não tenha dado grande esperança dessa possibilidade. Estava tudo combinado com o Pai. Minutos antes da partida, Jean Luc contactaria o Miguel a dar a notícia de que havia a possibilidade de assistir à corrida, como que a dar um toque dramático ao dia.

 

Miguel passeava junto à entrada do circuito, fotografava os aficcionados a entrar, meio triste, meio resignado, envergando aquele casaco vencedor de 1970, quando ouviu uma jovem a gritar. “Franz, Franz…wir warten auf dich!”

 

Miguel olhou na direção da jovem e pareceu-lhe que esta falava para si. Ela repetiu, desta vez em inglês…”Hey, Franz! We are waiting for you!” e aproximou-se dele com uma foto, dizendo-lhe – “You are Franz, right? This you in this picture! Come on, we are late for the Photoshoot!”

 

Miguel entendia perfeitamente inglês, apesar do sotaque alemão. A jovem dizia que estavam à espera dele para uma sessão fotográfica, mostrou-lhe uma foto de um homem parecidíssimo consigo, com um casaco verde, com um símbolo Porsche exatamente igual ao seu.

 

Só podia ser engano, mas quando deu conta estava a ser agarrado pela jovem e por mais dois rapazes, vestidos de preto, carregados com mochilas e câmaras.

 

Em menos de nada, estava dentro do circuito, no paddock e na boxe da Porsche, a ser fotografado junto dos pilotos, mecânicos, directores.

 

Todos lhe falavam em alemão, inglês, francês, como se uma vedeta se tratasse. Na verdade, julgavam que o Miguel era Franz, um jovem alemão e Youtuber enviado pela Porsche para uma acção de marketing da marca.

 

O objectivo era tirar fotos junto a convidados e ao Porsche 917 KH, usado na vitória de 1970, a primeira da marca.

 

Entretanto, o seu telemóvel não parava de tocar. O seu pai procurava-o insistentemente, Jean Luc também, sem sucesso.

 

Após várias tentativas, Miguel já conseguiu parar para respirar e dar a novidade inacreditável ao Pai.

 

“Pai, não vais acreditar! Estou na boxe da Porsche. Confundiram-me com alguém e estou aqui a tirar fotos com meio mundo! Acho que o casaco do avô Dieter deu sorte!”

 

Miguel passou as 24 horas de Le Mans a viver por dentro a corrida, as alegrias, as dificuldades, as avarias e no final…bem no final o resultado foi épico.

 

A jovem que o havia chamado abordou-o a dada altura e, entredentes, disse-lhe:

 

“You are not Franz! But you really look like him.” Os dois riram-se como doidos e aquela aventura aproximou ainda mais os dois, que passaram as 24 horas mais inesperadas das suas vidas!

 

Independentemente do resultado e do vencedor da corrida, o Miguel tinha a melhor história do mundo para contar aos seus filhos e netos, tal como o seu avô Dieter um dia fez.

 

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