LifeStyle • 03 Jun 2021

Miguel era um jovem de 25 anos, alto, loiro e mais parecia alemão do que português.
Adorava automóveis, corridas, mecânica e automobilia. Ele próprio era engenheiro mecânico de formação, influenciado pelas suas raízes e por toda a história da sua família, desde sempre ligada aos automóveis.
Coleccionava miniaturas, ferramentas, peças de roupa usadas outrora por mecânicos de corridas. Fatos, luvas, bonés, casacos, entre outros.
A peça mais rara era um casaco da equipa Porsche, que herdou do seu avô Dieter Hersh, mecânico da marca alemã nos anos 60 e 70.
Quando Miguel nasceu, o seu Avô já não estava entre os mortais, mas a sua memória era constantemente avivada pelo seu pai, que já havia nascido português e com orgulho contava a vez que o Avô Dieter foi campeão em Le Mans, logo na primeira vez em que a Porsche ganhou a mítica corrida, em 1970.
O Avô Dieter era a referência máxima da família. Alemão, excelente profissional, óptimo contador de histórias e um herói do mundo automóvel, pela sua experiência no mundo das corridas, sempre ligado à marca Porsche.
O ano em que fazia 25 anos coincidia com o centenário da mítica corrida.
Era a altura certa para visitar Le Mans, e tentar reviver momentos como os do filme “Le Mans 66: O Duelo”.
Miguel queria muito ver a corrida e sentir toda aquela energia, tantas vezes descrita pelo seu Pai, que teve várias oportunidades de acompanhar o Avô Dieter, mas logo percebeu que ia ser muito difícil encontrar bilhetes.
Ia ser um evento muito procurado por todos os aficcionados.
Tentou convencer dois amigos a acompanhá-lo, mas sem sucesso.
Lá teria que se aventurar sozinho, achava ele, até ao momento em que o Pai lhe disse que tinha contactado um velho amigo e colega do Avô, e havia a forte possibilidade de conseguir bilhetes.
Mas, forte possibilidade não é certeza, pensou o Miguel.
“Não interessa, vamos!” – disse o pai.
“E vamos no tesouro da família!” – disse o pai, com entusiasmo.
O velho, mas imaculado Porsche 356B, vermelho. Mais uma herança do Avô Dieter.
“Será que chegamos lá?” – perguntou Miguel, que apesar de ser fã de automóveis clássicos, tinha os seus receios e, em bom rigor, não queria estragar a sua futura herança.
“Claro que sim!” – respondeu convictamente o pai.
Chegado o dia, arrancaram rumo a Le Mans. Cerca de 1400 kms, em 15 horas de condução, dizia a aplicação de navegação.
Miguel apresentou-se junto do Pai, envergando o velho, mas imaculado casaco verde claro com o símbolo da Porsche ao peito, assinado por Hans Hermann e Richard Atwood. O velho casaco do seu avô Dieter, o seu herói de Le Mans.
A viagem foi feita por etapas, em amena conversa e em pleno programa de Pai e filho, de forma a chegar dois dias antes da corrida.
Chegados a casa do amigo do avô Dieter, o francês Jean Luc, viram-se confrontados com uma má notícia. Só havia conseguido um bilhete.
“Não faz mal, vais tu!” – disse o Pai.
“Nem pensar, Pai. Vais tu! Tento para o ano” – disse o Miguel!
“Em Le Mans costumam ocorrer coisas extraordinárias! Não percas a esperança. Seja como for, a vida à volta da pista é fantástica. Mantém-te por perto!” – disse Jean Luc no seu português aveludado a francês, dos tempos em que visitou o avô Dieter e das viagens em férias ao nosso Portugal solarengo.
Chegou o dia da prova. O centenário Le Mans. 100 anos das 24 horas de Le Mans, ali, tão perto e o Miguel sem poder viver por dentro por causa de um bilhete.
Com uma tristeza disfarçada, viu o seu pai a entrar com o Jean Luc, que tinha um “free pass”. O objectivo do francês era encontrar uma forma de conseguir fazer entrar o Miguel, embora não tenha dado grande esperança dessa possibilidade. Estava tudo combinado com o Pai. Minutos antes da partida, Jean Luc contactaria o Miguel a dar a notícia de que havia a possibilidade de assistir à corrida, como que a dar um toque dramático ao dia.
Miguel passeava junto à entrada do circuito, fotografava os aficcionados a entrar, meio triste, meio resignado, envergando aquele casaco vencedor de 1970, quando ouviu uma jovem a gritar. “Franz, Franz…wir warten auf dich!”
Miguel olhou na direção da jovem e pareceu-lhe que esta falava para si. Ela repetiu, desta vez em inglês…”Hey, Franz! We are waiting for you!” e aproximou-se dele com uma foto, dizendo-lhe – “You are Franz, right? This you in this picture! Come on, we are late for the Photoshoot!”
Miguel entendia perfeitamente inglês, apesar do sotaque alemão. A jovem dizia que estavam à espera dele para uma sessão fotográfica, mostrou-lhe uma foto de um homem parecidíssimo consigo, com um casaco verde, com um símbolo Porsche exatamente igual ao seu.
Só podia ser engano, mas quando deu conta estava a ser agarrado pela jovem e por mais dois rapazes, vestidos de preto, carregados com mochilas e câmaras.
Em menos de nada, estava dentro do circuito, no paddock e na boxe da Porsche, a ser fotografado junto dos pilotos, mecânicos, directores.
Todos lhe falavam em alemão, inglês, francês, como se uma vedeta se tratasse. Na verdade, julgavam que o Miguel era Franz, um jovem alemão e Youtuber enviado pela Porsche para uma acção de marketing da marca.
O objectivo era tirar fotos junto a convidados e ao Porsche 917 KH, usado na vitória de 1970, a primeira da marca.
Entretanto, o seu telemóvel não parava de tocar. O seu pai procurava-o insistentemente, Jean Luc também, sem sucesso.
Após várias tentativas, Miguel já conseguiu parar para respirar e dar a novidade inacreditável ao Pai.
“Pai, não vais acreditar! Estou na boxe da Porsche. Confundiram-me com alguém e estou aqui a tirar fotos com meio mundo! Acho que o casaco do avô Dieter deu sorte!”
Miguel passou as 24 horas de Le Mans a viver por dentro a corrida, as alegrias, as dificuldades, as avarias e no final…bem no final o resultado foi épico.
A jovem que o havia chamado abordou-o a dada altura e, entredentes, disse-lhe:
“You are not Franz! But you really look like him.” Os dois riram-se como doidos e aquela aventura aproximou ainda mais os dois, que passaram as 24 horas mais inesperadas das suas vidas!
Independentemente do resultado e do vencedor da corrida, o Miguel tinha a melhor história do mundo para contar aos seus filhos e netos, tal como o seu avô Dieter um dia fez.
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