Era uma vez o meu Rally

Competição 13 Mai 2023

Era uma vez o meu Rally

Por Pedro Martins Costa

É no início dos anos noventa que todo o amor pelo Rally começou. Na pacata vila de Sever do Vouga, as paisagens ainda não se agitavam com o rebuliço dos irrequietos mirtilos. A meio da tarde, o pequeno rapaz saía da escola primária e descia a pé o caminho até casa dos Avós, onde por entre as laranjeiras e as vinhas a Laida e o Adelino o esperavam. Um clássico em tantas casas e em tantos tempos, enquanto os Pais esticavam as horas dos seus trabalhos diários. Nesse percurso, o pequeno rapaz sabia já de cor os carros com que se cruzava: achava particularmente piada às carrinhas laranja de uma empresa de construção da terra, que contrastavam com os tons mais habituais do resto da paisagem.

A dança dos dias permanecia praticamente igual, até que chegavam os primeiros meses da primavera. Sabíamos quando seria o dia santo, mas não dava bem para adivinhar quando é que eles iam começar a aparecer ao longe. Até que… aquele som! Espera, será que é? Será? É! Ai, se é! Logo a alma brilhava e os passos do pequeno rapaz estancavam no passeio à sua espera: branco e ainda a resplandecer sem pó, com os seus quatro olhos redondos, lá surgia um Lancia Delta Integrale. Não demorava muito para, se fosse dia de sorte, aparecer também (mas de olhos ainda semicerrados) um Celica. Eram os batedores das equipas oficiais que começavam, semanas antes do rally, a estudar o terreno para que todos estivessem o mais bem preparados possível quando chegasse a hora da verdade. Passavam ali a caminho da serra, onde algumas semanas depois estariam já a soprar o pó em volta dos caminhos que conduziam às Minas do Braçal. De repente, ali à frente do pequeno rapaz assomavam as versões reais dos Majorette que a Mãe lhe comprava quando ia à livraria – se tivesse sorte, talvez alguém que fosse ao volante lhe retribuísse o tímido aceno à sua passagem.

Já em casa dos Pais, a cada dia o rally tomava um lugar crescente à mesa: fosse porque o Irmão, mais velho, estivesse a combinar ir com os amigos ver a especial, fosse porque o Pai começava a ultimar a lista reforçada de compras para O Sentinela, a sua tasca que nos dias em volta do rally tinha obrigatoriamente que robustecer as suas reservas de pão, fêveras, vinho e cerveja. Alguma água, também.

Era este o encanto da prova que, durante semanas, agitava a vila de Sever, ao ponto de nas escolas ser sabido e seguro que, no dia em que o rally ali passasse, seria feriado: era o dia de São Rally. Um encanto ainda mais fortalecido quando, mais tarde, o Irmão levava consigo o rapaz ali já menos pequeno a caminho da serra, ainda de madrugada e com as fogueiras de quem por lá tinha pernoitado ainda a espreitar pelas clareiras. Umas vezes, íamos de casa a pé com o espírito de aventura às costas (e a mochila com as sandes); outras vezes, e se o Pai não precisasse dela naquele dia, era a Ford Transit branca que nos levava serra acima até àquele sítio em que conseguíamos ver os carros a surgir lá ao longe e a serpentear até passar bem perto de nós. É o azul com o amarelo e dourado do Subaru, é também o branco com as listas Martini do Focus que agora vêm à memória deste rapaz que vos escreve, ali pequeno a ver o McRae a passar, agora a evocar o romantismo deste tão bonito momento desportivo que o nosso país pode viver todos os anos.

O nosso rally, assim feito de memórias de tantas e de tantos, que a cada ano se acumulam numa história crescente. Hoje, a tasca já fechou e a Transit morará desmantelada numa sucata qualquer; hoje, as Minas do Braçal acolhem os percursos pedestres e deixam o ronco dos motores bem ao longe. Mas hoje, no que mais importa, o rally acontece e permanece bem vivo, com o branco, vermelho e preto dos Toyota, os azuis e vermelhos dos Hyundai, o vibrante roxo dos Ford a ressoar por Lousã, Góis, Figueira da Foz, Arganil e Amarante (entre tantos outros lugares). Dezenas de carros e pilotos a lembrar-nos o porquê deste ser o melhor rally do mundo, feito por eles e feito por nós também. Faltará o Hyundai do Craig a pôr-nos um sorriso na cara em cada passagem, mas quando ali todos saltarem em Fafe, depois de dobrar o Confurco, teremos nós mais memórias para contar a sorrir. “Don’t forget to enjoy!” Por agora, vou ali preparar umas sandes e perguntar ao meu Irmão a que horas vamos para a estrada.

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