Clássicos • 18 Nov 2021

Ei-lo, o automóvel que criou o conceito de superdesportivo, ao concentrar uma quantidade de atributos técnicos extraordinários, elaborados e aperfeiçoados por um grupo de homens fora de série, deixando todos os amantes deste mundo em loucura. Queremos apreciar tudo, provar as razões da sua genialidade, mas há uma cortina que é preciso transpor para o analisar devidamente: a dos sentidos.
Como esmiuçar o Lamborghini Miura objectivamente sem ficar embriagado pelas linhas, pelos sons?
É um desafio de ir à loucura.
Nem sei como tudo aconteceu tão rápido. Foi apenas há minutos que cheguei e já estou a subir a Rampa do Caramulo. Agarro o volante do Miura SV com a mesma expressão confiante de um miúdo no primeiro dia de escola. Enquanto obedeço aos gestos dos fotógrafos, surge a silhueta perfeita do outro Miura pelo canto do olho e tenho de me posicionar milimetricamente se não quiser criar uma embaraçosa e muito cara “carga de ombro” ao André Villas-Boas. Segundos depois, fazem-nos sinal para ultrapassar o “carro-câmara”. O André avança e o som do V12 abafa tudo à volta. Faz-me arregalar os olhos e acelera-me, ainda mais, o coração. Só depois me lembro que é suposto seguir atrás dele, então acelero também e, estranhamente, sou apanhado de surpresa pelo som vindo do “meu” Miura! Afinal o V12 está ali, a um palmo da minha nuca. Pelo retrovisor vê-se os carburadores a abrir e a desencadear aquela sinfonia perfeita. E o som entra por nós. Pelos ouvidos, pelos poros. Ressoa nos órgãos, entranha-se no cérebro. É uma injecção de cafeína, uma entrada num universo paralelo. É um sonho a acontecer…
Começo a pensar se não deveria ter escrito parte da peça antes de conduzir o Miura, para não ser contaminado pelas emoções. Mas o que é o Miura, senão uma máquina de fabricar emoções? Como se pode descrevê-lo verdadeiramente senão com alma? Aliás, mesmo quem nunca tenha experimentado um, alguma vez consegue ter uma relação desapaixonada com o modelo?
É impossível não ficar rendido às linhas ondulantes, que cobrem a mecânica como um lençol de seda, ou um vestido sobre um corpo perfeito, se quisermos cair na mais previsível metáfora. Na verdade, se há algo em que a aparência do Miura não me convence totalmente, é precisamente num excesso de delicadeza: as rodas traseiras demasiado finas, os “olhos” pouco agressivos e as “pestanas” em torno dos faróis, tornam os Miura P400 e P400 S quase demasiado femininos. Já o SV – com as rodas traseiras a encher a carroçaria, de si mais musculada, e a frente mais agressiva – é um dos raros automóveis que, independentemente do que esteja à volta, nos magnetizam e nos silenciam. É de uma presença avassaladora. Sobretudo pelas proporções dramáticas, como a baixa altura do tejadilho e a largura para lá do normal. E depois há os detalhes: o formato das portas, o desenho das jantes, o “estore” que cobre o motor, pormenores estilísticos marcantes que resultariam num excesso de exuberância se o resto do desenho não fosse tão limpo, tão objectivo, de uma sensualidade natural.
A quase unanimidade em torno do design do Miura, por tantos considerado o mais belo automóvel de sempre, contrasta com o moderado entusiasmo que Marcello Gandini tem quanto ao modelo. “Fico satisfeito que seja tão apreciado, mas não o vejo como um dos projectos mais importantes da minha carreira, porque não participei desde o início. Gosto especialmente dos projectos que influenciei desde o começo. Neste caso, só o vesti, ao contrário do que aconteceu com o Countach.”, revelou em uma entrevista.
A verdade é que o Miura não disfarça a inspiração no Ford GT40, um modelo que contagiou tanto a equipa técnica, como o designer. Apesar disso, a forma como Gandini transportou essa linguagem estética para um automóvel de estrada, polindo-a mas, simultaneamente, vincando-lhe o carácter, foi um golpe de génio. Não é também de descartar a influência de um dos seus mestres, Giorgetto Giugiaro, perceptível quando olhamos para o concept Chevrolet Testudo.
Poderia continuar a escrever sobre a estética do mais famoso dos Lamborghini, até completar um livro, mas com o Miura, o desafio é mesmo esse: tentar ver para lá do que está à mostra, de forma analítica. Tentar que a estética não se sobreponha à componente técnica e mesmo à experiência de condução. Procurar provar que há mais razões, menos superficiais, para querer conhecer e apreciar este modelo. Mas não é fácil. Durante as longas horas que passámos com o Miura só me ocorria o enredo da “Loucura”, de Mário de Sá-Carneiro, romance em que o protagonista é casado com uma mulher extremamente bela, cuja personalidade ele adora. Mas a obsessão é de tal modo, que se propõe desfigurá-la, para poder provar que a aprecia por muito mais do que a aparência.
Desfigurar qualquer destes dois fantásticos Miura não está nos meus planos, mas abrir as duas enormes “conchas” que formam a carroçaria do Lamborghini, ajuda a revelar um pouco da beleza interior do modelo e leva-nos ao ponto de partida da história.
Quando se espreita por debaixo do “lençol” de chapa, aquilo que se vê parece tudo menos um automóvel de estrada.
O chassis e a estrutura do capot perfurados para reduzir o peso, o motor transversal nos limites da largura da carroçaria e completamente encostado ao habitáculo, são o suficiente para se perceber o quão a sério estavam os rapazes de Sant’Agata quanto à ideia de fazer um automóvel de corrida para usar na estrada. Não há nada no pacote tecnológico do Miura que nunca tivesse sido feito antes, mas o crédito está no arrojo de reunir várias soluções inovadoras num só automóvel, a começar pelo V12 com dupla árvore de cames.
O que efectivamente surpreendeu o mundo, foi a ideia de apresentar um GT com motor em posição central. Recorde-se que, por esta altura, havia apenas um automóvel de produção em série com motor central e era o modesto Matra Djet. Mas a equipa técnica da Lamborghini, sendo fascinada pela competição, tinha já percebido que o futuro seria dos modelos de motor central. Era o que se constatava na Fórmula 1, e não só, desde o final dos anos 50. Nos sport-protótipos, a Cooper revolucionou com os Cooper Monaco e Bobtail. Também os Ferrari 246SP, 250P e 250LM provaram que, mesmo com um V12, era possível criar um desportivo de motor central compacto e imbatível. O princípio é fácil de entender: a colocação do motor atrás permitia aproximá-lo do centro do chassis, equilibrando a distribuição de pesos e favorecendo a tracção, por colocar mais carga sobre o eixo motriz.
Assim, a equipa da Lamborghini começou por estudar a opção do motor longitudinal, mas com uma particularidade: um habitáculo de três lugares e posto de condução central. A ideia nem sequer chegou a ser apresentada a Ferruccio, pois a equipa sabia que, para o projecto ter luz verde, teria de ser minimamente civilizado e prático.
A opção menos óbvia do motor em posição transversal só surgiu mais tarde, quando a equipa constatou que o motor era suficientemente estreito para caber entre o habitáculo e o eixo traseiro. Não era uma solução inédita: o Bugatti T251, de 1956, usava o motor de oito cilindros em linha em posição transversal, ainda que com resultados pouco felizes. Se algum modelo de competição serviu de inspiração a esta opção, foi o Honda RA271 de Fórmula 1, um modelo que, apesar de não ter tido grande sucesso, apresentava um layout compacto com o V12 de 1500cc montado em posição transversal. Claro que esta orientação do motor, levantava a questão da transmissão. Era preciso desenvolver uma caixa transaxle (junto ao diferencial) mas, naturalmente, não existia uma solução no mercado. Como o pessoal da Lamborghini não era de virar as costas a um desafio, trataram de fabricar uma caixa internamente, apesar de nenhum dos membros da equipa ter qualquer experiência no desenho e desenvolvimento de transmissões.

Neste processo, inevitavelmente, a equipa de Stanzani voltou as suas atenções para o Mini, um modelo que apesar de, em conceito, não ter qualquer relação com o Miura, tinha em comum a necessidade de colocar um motor transversal e respectiva transmissão por cima do eixo motriz e num espaço reduzido.
Com efeito, o Lamborghini, viria a ter a caixa de velocidades a partilhar o óleo com o motor, tal como o utilitário inglês. Uma solução que se viria a provar pouco adequada a um motor de alta performance e que seria abandonada no SV.
Em todo o caso, uma vez aplicado o motor no chassis, o resultado era algo de absolutamente fascinante para quem tenha o mínimo gosto pela técnica. De tal modo, que Ferruccio, assim que viu o conjunto, não conseguiu esperar mais para o revelar ao mundo e decidiu apresentar o projecto, sem carroçaria, no Salão de Turim, em Novembro 1965. E o que parecia um gesto de impulsividade, depressa se revelou um brilhante golpe estratégico, já que durante o certame foram vários os clientes que se apressaram a sinalizar o seu interesse, mesmo desconhecendo totalmente qual seria o preço ou aspecto do produto final (de referir que este chassis se tornou tão mítico que, em 2013, a Gooding & Co. apresentou-o a leilão em Pebble Beach e o martelo só desceu aos 436.000 euros). De repente, o projecto paralelo afigurava-se como uma potencial rampa de lançamento da marca.
Tornava-se assim urgente resolver a questão do design, mas nem foi preciso ir à procura da solução. O entusiasmo gerado por aquele chassis contagiou também Nuccio Bertone, que procurou Ferruccio e convenceu-o que deveria confiar a tarefa ao seu estúdio. Bertone, por sua vez, confiou a tarefa ao jovem Gandini. Apenas quatro meses depois, era apresentado no Salão de Genebra o protótipo, não completamente funcional, mas já com a aparência final.
Claro que, para completar o espectáculo e aumentar o impacto da apresentação, era preciso um nome. Até então, o projecto era designado somente como P400. P de “posteriore” e 400 como referência à capacidade do motor, que havia crescido até aos 4000cc. Diz-se que teria sido Ferruccio, apaixonado por tauromaquia, a escolher o nome da raça da ganadaria do seu amigo Don Eduardo Miura. Bob Wallace afirmava que teria sido alguém na Bertone a escolher o nome. Seja quem for o responsável, há que tirar o chapéu: poucos nomes de automóveis soam tão bem como Lamborghini Miura.
Depois de apresentada uma roupagem que ultrapassava as expectativas criadas pelo chassis, as vendas sucediam-se a bom ritmo. Ajudou também o facto de se ter tornado o modelo preferido das celebridades: Frank Sinatra, Miles Davis, Xá do Irão, Aristotles Onassis, René Arnoux, Gianfranco Innocenti, Rod Stewart, Elton John, Van Halen foram alguns dos nomes, a que se juntariam, décadas mais tarde, Nicolas Cage, Jay Kay, Jean Todt e o próprio Dallara.
Com as vendas a acontecer, começava a maior aventura, que era a passagem à produção de um automóvel tão complexo, pelas mãos de uma empresa tão pequena e jovem. Passou mais de um ano entre o Salão de Genebra e a entrega do primeiro exemplar, num desenvolvimento tão apressado quanto incompleto. O Miura foi sempre vítima de várias fragilidades e, Stanzani, Dallara e Wallace eram unânimes em afirmar que só no SV é que o modelo atingiu a maturidade de desenvolvimento.
A primeira dificuldade prendeu-se com as expectativas, pois embora houvesse uma grande excitação em torno do Miura, a Lamborghini não esperava conseguir vender mais de 25 unidades ao ano. Por isso, todas as ferramentas de produção e moldes foram concebidos com base num volume de produção muito mais baixo do que acabaria por ser necessário. Da peça que compunha o cárter e caixa de velocidades, até aos enormes capots de alumínio, tudo representava um desafio preocupante.
Sem nunca ter havido exactamente um automóvel para testes, à excepção do protótipo cor-de-laranja de Genebra (que nem sequer tinha a distância entre eixos definitiva), os exemplares iam sendo testados antes da entrega e depois acabados e vendidos. Os problemas iam sendo resolvidos caso a caso e, muitas das vezes, eram os proprietários a acabar por fazer o trabalho dos pilotos de teste da fábrica, identificando falhas e regressando com os carros à origem. A reputação de fiabilidade que Lamborghini tanto desejava foi pelo ralo, mas o carácter do Miura e o orgulho dos proprietários, sobrepunham-se a tudo. Excepto nos casos que se tornaram frequentes e célebres, em que os Miura ardiam completamente, um risco resultante da posição dos carburadores face às velas e cabos de ignição e à grande dose de gasolina injectada. A solução, dizem os especialistas, é acelerar a fundo e deixar que a admissão roube o oxigénio necessário à combustão. Não é defeito… é feitio de um automóvel consideravelmente selvagem.
Havia outras falhas conceptuais no modelo, nomeadamente o facto de ter quatro rodas das mesmas dimensões, apesar da preponderância de peso na traseira. O motivo? Poder ter uma roda suplente útil. Claro está que no SV, essa preocupação passou para segundo plano.
Outra característica “mítica” do Miura, era a tendência para levantar a frente a alta velocidade. Bob Wallace esclareceu a origem do mito no depoimento para o livro de Pete Lyons “The Complete Book of Lamborghini”. Como acontece com a maior parte dos construtores, a Lamborghini preparava exemplares de imprensa especiais quando sabia que o jornalista em causa era exigente e tinha capacidade para rodar nos limites.
Para Wallace havia apenas dois jornalistas assim: Paul Frère e José Rosinsky. Quando este último foi a Sant’Agata para realizar o teste para a Sport Auto, Wallace tinha preparado algo especial. Rosinsky foi à auto-estrada e os homens da Lamborghini registaram uma passagem a 288km/h. O jornalista não se mostrou demasiado impressionado e então Wallace disse-lhe que voltasse no dia seguinte para um novo teste. No entretanto, trocaram o motor por uma unidade que, calculam, teria cerca de 30 a 40cv extra. Na manhã seguinte Rosinsky voltou à carga, mas terá apanhado condições diferentes, com ventos pouco favoráveis e, alegadamente, as rodas levantaram mesmo do chão. Felizmente tudo acabou bem, mas o jornalista, percebendo que tinha sido usado como cobaia, cortou relações com Wallace. Depois disso, não há registos oficiais de o episódio se ter repetido. Em todo o caso, o SV tinha a frente ligeiramente mais baixa para reduzir o efeito de “levitação” e os SVJ – modelo mais extremo do qual foram feitas apenas cinco unidades usando a base do SV -, contavam com deflectores dianteiros para aumentar a pressão aerodinâmica sobre o nariz.
Vim ao Caramulo precisamente para guiar o SV. Interessava-me perceber qual era a visão que a equipa tinha para o Miura, muito mais do que constatar as eventuais fragilidades dos modelos iniciais. Contudo, não podíamos perder a oportunidade de juntar dois Miura, algo muito difícil de se conseguir em Portugal e penso que inédito em qualquer publicação nacional. Para nossa alegria e dos leitores, o André Villas-Boas aceitou trazer o Miura S até ao Caramulo (aonde já tem vindo por altura do Caramulo Motorfestival). Desta vez, no entanto, veio por estrada. Com humor, dizia-me: “Não sabia se havia de vir a rolar, mas ontem fomos lá à garagem, ‘falámos para ele’ e portou-se bem, por isso decidi vir a guiá-lo.”
Este ritual de “fazer a corte” a um exótico italiano antes de decidir usá-lo, não é raro, sobretudo para quem não tem tempo para os usar com a regularidade necessária. “Eu até vou usando, mas não é fácil sair à rua com um carro destes no centro do Porto, pelo excesso de atenção que gera. Acabo por usar mais o 911 RS.”
Quanto à viagem, a realidade é outra: “Faz-se muito bem. É suficientemente confortável e a caixa é longa. Permite fazer boas velocidades de cruzeiro sem esforço.”
O Miura S de André Villas-Boas é um regalo para os olhos. Restaurado na Cremonini Classic com o objectivo de ficar perfeito, está 100% fiel à especificação original, como atesta o certificado do Polo Storico Lamborghini.
Este exemplar foi originalmente vendido em França, como se deduz pelas ópticas amarelas, o que proporciona um agradável contraste com o “Rosso Acrilico” da carroçaria que, por sua vez, resulta em pleno com o belíssimo habitáculo em tons de azul. Uma especificação pouco óbvia, mas muito elegante.
Curiosamente, um dos mais recentes proprietários foi também um conhecido coleccionador português, antes de passar pelo Reino Unido, onde Villas-Boas o adquiriu.
Há um encanto próprio nas linhas puras e fluidas do S, em alternativa ao ar musculado do SV. Além da carroçaria estreita e das “pestanas”, o S distingue-se pelos farolins traseiros do Fiat 850 Spider (os faróis dianteiros também são provenientes desse modelo), enquanto o SV usa um conjunto originário do Fiat Dino Coupé.
O SV do Museu do Caramulo, praticamente dispensa apresentações, de há tantos anos ser conhecido dos entusiastas. O chassis #4852 foi um dos muitos Lamborghini que passaram pela colecção do Sheik Al-Thani. A obsessão do Emir do Qatar pelo modelo é tal, que chegou a ter sete Miuras em simultâneo. Uma repetição que só pode fazer sentido na cabeça de quem tem três mulheres…
Em 1989 o Dr. João de Lacerda adquiriu-o através do famoso comerciante suíço Phillipe Fournier e, como era seu hábito, trouxe-o a rolar de Genebra até ao Caramulo. Muito metódico, o Dr. Lacerda guardava um caderninho em cada um dos seus automóveis com o registo dos quilómetros de cada viagem e anotações tais como necessidades de melhoria ou consumos, um hábito mantido pelos netos. Na primeira linha do caderno do Miura, pode ler-se: “26 de Setembro de 1989. Chega ao Caramulo, desde Geneve. +/- 3000km. 4 litros de óleo. Consumo à média de 150km/h, +/- 14,5 litros aos 100km.”
Mais abaixo, depois de vários registos de curtas viagens, uma nota interessante: “Regresso de Lisboa. Motor impecável, a 200km/h durante 66km.” Bons tempos!
À data da aquisição, o Miura tinha as embaladeiras a preto, em contraste com o resto da carroçaria, como é comum. Só recentemente é que os herdeiros o devolveram à invulgar especificação original, ou seja, integralmente prateado.
À saída da linha de produção, o habitáculo era todo em preto em vez da actual cor de tabaco. A família Lacerda nunca reverteu esta modificação, por duas boas razões: não só resulta muito bem esteticamente, como tem o valor de ser uma transformação feita na fábrica, em Sant’Agata, a pedido daquele que era o seu proprietário em 1982. A evidência de que o trabalho foi feito por quem sabia, está na presença da pequena medalha de S. Cristóvão na consola central, no local onde os P400 e S tinham o canhão de ignição. Um detalhe tantas vezes esquecido nos restauros dos SV…
Porque dos registos originais não consta o ar condicionado opcional Borletti, acredita-se que terá sido aplicado nessa visita à fábrica em 1982.
No ano 2000, o motor do Miura necessitou de um rejuvenescimento. A tarefa foi confiada a Philippe Rochat, que depois da reparação dos componentes, veio às oficinas do Caramulo montar o motor.
Um detalhe curioso, que não passará despercebido aos mais atentos adeptos do automobilismo, é a familiaridade da matrícula SN-60-56. Este registo foi escolhido e solicitado pelo Dr. Lacerda, por ser referente ao primeiro Lamborghini Miura oficialmente importado para Portugal e que, no entretanto, já havia saído do país. Esse P400, comprado novo por Paulo Coimbra, ficou famoso por ter alinhado pelas mãos de Nicha Cabral no Primeiro Grande Prémio ACP, disputado na Granja do Marquês em 1968, naquela que terá sido, provavelmente, a primeira participação mundial de um Miura numa prova de velocidade. Apesar de ter mostrado potencial, o resultado foi lamentável devido às modificações feitas pelos mecânicos de Nicha, nomeadamente o escape directo, que acabou por retirar rendimento ao motor. A desistência foi o corolário óbvio.
O facto do chassis #4852 já fazer parte da memória colectiva dos entusiastas portugueses que todos os anos visitam o Museu do Caramulo, só aumenta a sensação de responsabilidade que é conduzir um Miura SV. Como se a cotação de cerca de dois milhões de euros não bastasse… Embora não pudesse dizer que não ao convite do Salvador Patrício Gouveia e do Museu do Caramulo, o “nervoso miudinho” já me acompanhava nas semanas anteriores ao ensaio. Afinal, se algo corresse mal, nada me restava senão oferecer o meu pescoço em sacrifício e sugerir que colocassem os meus restos em exposição numa qualquer prateleira do Museu, já que nem todos os rendimentos que acumule até ao fim da vida poderiam compensar os danos.
É com a “leveza” desse pensamento, que coloco o dedo através do puxador, camuflado nas aletas que adornam o pilar da porta. Porta que, surpreendentemente, se fecha com um suave e preciso “clique” que transpira qualidade. Não se bate a porta do Miura: basta largá-la, ela encontra o seu lugar. Um detalhe quiçá irrelevante, mas capaz de fascinar até os adeptos dos automóveis japoneses.
Uma vez lá dentro, confirmo o que as imagens sempre me sugeriram: que a posição de condução é absurda, pela distância e altura a que o volante se encontra. Dito isto, o espaço é mais amplo do que seria de esperar e tanto o volante como os pedais estão bem alinhados com a baquet minimalista.
Impressiona a altura a que estamos do chão. À excepção de um Lotus Europa, não me recordo de outro modelo de estrada em que esta sensação seja tão marcante. A visão para a frente é fascinante: a linha do capot é muito baixa, o que proporciona uma superfície vidrada enorme, que se estende até quase à cabeça do condutor e oferece uma extraordinária vista panorâmica, quase como uma daquelas TV’s de ecrã curvo. Lá na frente, marcam os limites os pronunciados guarda-lamas. Em compensação, para trás, pouco se vê entre o corpo dos carburadores e as aletas que cobrem o motor. Por momentos penso que isso é irrelevante, afinal, quem é que vai tentar ultrapassar um Miura? E depois lembro-me que está cá outro Miura, com um condutor bem mais experimentado.
Pronto para uns momentos de condução lenta para as fotos, que me permitirão ambientar ao Lamborghini, rodo a chave.
A bomba faz o som de chamada típico e, quando para, é altura de avançar para a última posição. O motor de arranque faz o som profundo que se espera de algo que tem de fazer girar o V12, que arranca e fica quase silencioso e hesitante, até eu dar o primeiro toque no acelerador que permite “limpar”. A subida de rotação é mais própria de um motor de moto e o som é rouco, complexo, mas melodioso. Não resisto a mais um toque no acelerador, mas depois é preciso avançar: os Miura não se dão especialmente bem com longos períodos ao ralenti.
O arranque faz-se de forma muito suave. A embraiagem é pesada, claro está, mas é progressiva no seu funcionamento e quase não é preciso acelerar para arrancar. Os 399Nm são extraídos às 5750rpm, mas há suficiente binário nos baixos regimes para mover os 1293 quilos do SV sem esforço.
O selector da caixa é para pulsos firmes. A Lamborghini chegou a testar um sistema hidráulico para suavizar o comando que, embora resultasse, revelou-se pouco fiável. À excepção desse detalhe, o Miura é surpreendentemente dócil. O motor é muito cheio e linear, permitindo passar de caixa muito cedo e desfrutar do V12 com calma. Apesar do amortecimento firme para os padrões da época, a faceta de GT está lá. Não fosse pelos bancos minimalistas e seria perfeitamente possível fazer centenas de quilómetros de uma assentada.
O que mais surpreende no Miura até este momento é a direcção, muito leve, muito directa e extremamente comunicativa. Não hesito em dizer que é das melhores direcções que alguma vez experimentei, com o nível de informação que transmite, por exemplo, um 911, mas muito mais controlada, sem o nervosismo e movimentos excessivos do Porsche. É um detalhe fundamental para incutir a confiança num automóvel que, de resto, tem tudo para intimidar o condutor. Isso e o facto do SV estar todo em boas condições, sem folgas, com muita precisão na resposta ao acelerador e devidamente alinhado. A única excepção são os discos de travão, ligeiramente empenados, o que afecta um poder de travagem já de si totalmente desproporcionado para um automóvel de, alegadamente, 385cv às 7850rpm. Wallace admitia que os números anunciados eram optimistas. Segundo ele, um P400 não faria mais que 320cv. Um SV (sigla que significa Spinto Veloce, algo que se traduz vagamente como “puxado e veloz”) atingiria talvez algo próximo dos 370cv. É, ainda assim, muita potência para um automóvel tão puro e duro. E sente-se bem…
Durante os primeiros quilómetros vou aproveitando as bonitas curvas do Caramulo para ir sentindo o “pisar” do Lamborghini, colocando progressivamente mais carga sobre as generosas paredes dos pneus. A frente não é demasiado rápida – nem convêm que seja quando se têm cerca de 56% do peso em cima do eixo traseiro – mas é obediente e precisa, apesar da falta de peso. Atrás, o Miura vale-se claramente dos pneus de 255 de largura para manter excelentes níveis de motricidade e não apetece descobrir os limites deliberadamente. Na verdade, quase nenhum automóvel de motor central dos anos 70 convidava a explorar os limites da aderência, pois não era essa a sua natureza. Mas, de todos, aquele que mais incentiva a conduzir de forma empenhada, é mesmo o Miura, seja pela transparência dos comandos, pela precisão da suspensão ou pela simples tentação de explorar o glorioso motor.
Não há espaço na Serra do Caramulo para verificar a veracidade dos 290 km/h de velocidade máxima anunciada – o que me dispensa de admitir que também não haveria coragem – mas há dois ou três segmentos de estrada em que é possível exercitar o motor do SV até à quarta velocidade. À entrada de um deles, engreno primeira, com o característico “clac-clac” do selector. Arranco e vou aumentando a pressão no acelerador suavemente. Até às 3500rpm o motor é muito sereno, a partir daí, muda de carácter. Torna-se agudo, urgente. Nunca parece em esforço e sobe até para lá das 6000rpm com uma vivacidade impressionante.
Não há como apressar as passagens de caixa. É preciso um ligeiro compasso de espera porque o selector leva o seu tempo a fazer a viagem entre relações. Tal como na música, em que os silêncios são determinantes e medidos com exactidão, também estes intervalos entre cada “investida” do Miura são para respeitar. De segunda para terceira, o movimento da alavanca na grelha faz um som de fricção metálica que é estranhamente satisfatório e o ímpeto continua. O Miura ganha velocidade como nenhum outro automóvel do seu tempo, de forma feroz e consistente. Onde a largura da estrada permitir, devora Porsches ao pequeno-almoço. Passaram 50 anos desde que este exemplar saiu da fábrica e a sua rapidez ainda impressiona. Os dados não mentem: os 4,8 segundos dos 0 aos 100km/h continuam a não ser um número vulgar nos dias que correm.
Mais surpreendente ainda é o facto de parecer bem agarrado à estrada, pelo menos nesta secção que tem bom piso, sempre a subir, e entrecortada por duas curvas em que é preciso reduzir. E reduzir é um prazer, graças aos pedais perfeitamente posicionados para o ponta-tacão e à subida instantânea de rotação a cada toque no acelerador. É tudo bastante intenso e exige concentração, mas é profundamente gratificante quando se encontra harmonia entre os nossos movimentos e as reacções da máquina. É preciso progredir com calma e sem apressar o ritmo de adaptação. Algo mais difícil de fazer quando eu e o André Villas-Boas seguimos em “formação”, para permitir aos artistas realizarem as fotos e vídeos a partir da beira da estrada. É importante dar alguma emoção ao momento e, para isso, é preciso castigar o pedal da direita…
Este segmento de estrada, com piso mais imperfeito, é marcado por algumas curvas rápidas. O Miura S segue à frente e fazemos o percurso num sentido, a ritmo razoável. No regresso, o André está, claramente, numa estratégia ofensiva. Pisa mais forte e, eu, com a devida distância, procuro igualar o ritmo para que passemos razoavelmente juntos pelas câmaras. Há uma sequência muito particular, feita em terceira, composta por uma esquerda a descer, logo seguida por uma direita a subir. Os stops do “Mister” piscam apenas por um segundo para depois “mergulhar” para a esquerda. Depois disso, nem pensar em voltar a travar. Tento não olhar demasiado para o Miura vermelho e concentro-me na minha trajectória e ainda bem, porque quando a suspensão faz a compressão antes da subida, há um daqueles momentos arrepiantes em que se sente o peso da traseira a querer desviar-se da linha de trajectória. Não há qualquer deslizar das rodas, mas instintivamente, endireito o volante de forma suave e rápida e mantenho a pressão no acelerador. O Miura sai com elegância da curva, sem perder a trajectória, mas “em bicos de pés”. Um medidor de ritmo cardíaco teria sido a mais interessante telemetria para este bocadinho…
Paramos ambos mais adiante e eu estou decidido a não dar parte fraca, ao admitir que aquele momento foi desconfortável. Saímos dos automóveis, ambos com um sorriso e o André dispara:
– Aquele bocadinho ali, assusta…!
– Então também sentiste? Então estou mais aliviado por não ter sido só eu…
Em defesa do meu companheiro do dia, há que dizer que os pneus estreitos do S tornam a situação ainda mais delicada. Em minha defesa, há que dizer que tenho um pedaço menos de experiência com a máquina.
Em todo o caso, a conclusão a tirar é a mesma: o Miura não é um automóvel para principiantes e obriga sempre a uma abordagem cautelosa quando a estrada se torna exigente. É a 80% das capacidades do chassis que reside o verdadeiro prazer. Em situações em que se possa explorar o motor sem aflorar os limites da borracha ou dos travões. No entanto, há que dizer que este automóvel é muito mais do que um GT. Qualquer preconceito que pudesse ter pelo facto de lhe faltar “pedigree” desportivo, foi definitivamente afastado. O Miura pode não ter feito corridas, mas as corridas fizeram o Miura, e isso sente-se em todos os detalhes.
Ao fim do dia o João Apolinário pede-me que faça uma subida de todo o percurso apenas para registar o som do Miura. “Claro que sim.” É um prazer. E que prazer!
Lá em cima, no Caramulinho, o céu está a pôr-se alaranjado.
A luz reflecte no topo dos guarda-lamas. O barítono que mora lá atrás faz o seu solo, enquanto, nas pontas dos dedos, o belíssimo volante vai contando a história de cada curva. As mãos relaxam, os últimos raios de sol aquecem-me a cara. É o zénite desta jornada. É tão perfeito que parece filme. Aliás, vêm-me ao pensamento as notas de “On days like these”, a faixa da famosa sequência de abertura de “Italian Job”. A diferença é que esta estrada é melhor e este Miura também.
Não posso negar a sensação de alívio ao desligar o Lamborghini pela última vez, sabendo que tudo correu bem. Olho para ele, demoradamente, com serenidade. A partir desde momento, a nossa relação volta a ser platónica. Talvez por isso, ao contrário do protagonista da “Loucura”, não sinto necessidade de desfigurar o objecto da minha paixão para provar a profundidade dos meus sentimentos. Sei bem que gosto tanto do Miura pelo que ele é, como por aquilo que parece, e esse pensamento não me atormenta. Porque esse equilíbrio entre a emoção que as linhas sugerem e a emoção que deveras proporciona, é a essência do conceito de supercarro. Um conceito que nasceu com este modelo e que habita os sonhos dos entusiastas há mais de 50 anos.
A T&C agradece a colaboração neste ensaio a Stephane Abrantes (DeepSpirit Photo), André Villas-Boas e ao Museu do Caramulo através de Salvador Patrício Gouveia e João Lacerda.