O Primeiro Quilómetro de Arranque de Setúbal

Arquivos 17 Fev 2023

O Primeiro Quilómetro de Arranque de Setúbal

Por Pedro Fernandes

Setúbal, quatro de Agosto de 1930. Dezenas de milhares de pessoas convergem na Avenida Luísa Todi para testemunhar o primeiro Quilómetro de Arranque realizado naquela cidade. O entusiasmo em redor da prova é tremendo e os Bugatti Type 35C e Type 35B de Adalberto Marques e Henrique Lehrfeld destacam-se como as estrelas mais brilhantes do evento. Ao final do dia, um novo recorde nacional para este tipo de prova encontrar-se-ia estabelecido, mas estaria igualmente lançada a polémica em redor dos resultados.

O Quilómetro de Arranque de Setúbal fez parte das celebrações associadas à grande Exposição Regional do Distrito, a qual foi realizada para marcar a inauguração da rede de luz eléctrica em Setúbal, servindo paralelamente como palco para elevar a visibilidade dos produtos e indústrias locais. O evento foi bem-sucedido, atraindo um grande número de visitantes à cidade e região, através das numerosas actividades que tiveram lugar ao longo do mesmo, as provas de automóveis foram as que mais captivaram a atenção dos visitantes. Este tipo de competição bastante em voga no período tirava partido de um crescente fascínio pelos automóveis, símbolos da modernidade e do progresso tecnológico.

De modo a procurar evitar incidentes com os espectadores, um volume considerável de folhetos informativos foi distribuído ao público com o intuito de alertar para as possíveis questões de segurança inerentes a um evento desta natureza; nesses, a Comissão Organizadora salientava que a “pista” não devia ser atravessada durante as provas, apelando para que houvesse um cuidado muito especial em relação às crianças a fim de evitar “graves desastres que trariam o luto aos grandes festejos”.

Além dos folhetos de advertências acerca da segurança, a Comissão editou igualmente (em associação com o Automóvel Club de Portugal) livretes com a lista de regulamentos para o Quilómetro de Arranque e Concurso de Elegância e Conforto, o qual decorreria no seguimento do anterior. Esse mesmo livrete, distribuído aos participantes, lembrava que a responsabilidade de qualquer acidente no decorrer da prova seria exclusivamente dos pilotos, os quais poderiam ser nacionais ou estrangeiros, amadores ou profissionais, desde que munidos da licença de condutor e licença de concorrente passada pela Comissão Desportiva do ACP. O custo de inscrição no evento era de 100 escudos, valor que já incluía – quando necessário – o transporte dos automóveis nos vapores da Parceria Lisbonense.

O Quilómetro de Arranque de Setúbal consistia de duas categorias: “corrida” e “sport”, ambas abarcando dez classes distintas e designadas de “A” a “J”, sendo “A” a classe de cilindrada mais elevada (acima de 8000cc) e “J” a mais reduzida (até 350cc). Na categoria “sport”, os automóveis denominados de turismo necessitavam de seguir regras específicas em relação a uma série de elementos, os quais caso não se encontrassem presentes determinavam a inscrição do automóvel em causa na categoria “corrida”. Era então requerido que os automóveis de turismo mantivessem “os assentos correspondentes a lugares normais e confortáveis”; guarda-lamas que cobrissem as rodas “eficazmente”, capotas caso se tratassem de um cabriolets, para-brisas cuja aresta superior deveria ficar “pelo menos à altura do topo da cabeça de um condutor de estatura normal”, não sendo permitidos para-brisas de ocular; buzina e iluminação funcionais; escape, sendo proibidos os escapes dirigidos ao solo e uma ou mais rodas sobresselentes “afixadas fora do local destinado aos passageiros”. Os automóveis de turismo eram igualmente obrigados a mise-en-marche automática. Aos vencedores das categorias “sport” e “corrida” seria atribuído um prémio de 1000 escudos, assim como um troféu.

O jornal “O Século” de cinco de Agosto mencionava que “[a] todo o momento chegavam forasteiros, em grupos numerosos, às centenas, aos milhares. O movimento foi mais que extraordinário: vertiginoso”. A Exposição Regional e as provas automóveis que a acompanharam acabariam por colocar cerca de 30.000 pessoas na Avenida Luísa Todi no dia 4. Relatos do período notam que, na noite anterior, já chegavam tanto concorrentes como público e que não seria “exagero calcular em 3000 o número de veículos automóveis presentes em Setúbal às primeiras horas da manhã”.

Durante a madrugada do dia 4, entre as 15 e as 17 horas, realizaram-se os treinos para as provas. O horário peculiar reflectia a realidade das limitações colocadas pelo numeroso público que afluía diariamente ao espaço da Exposição Regional na Avenida Todi logo pela manhã, obrigando a uma noite de pouco sono para os residentes da principal artéria de Setúbal.

As dificuldades da prova não se prenderiam contudo apenas com o volume de público no local, mas também com o próprio traçado. Duas curvas definiam-se como inimigas a ter em conta para os travões de eficácia limitada dos automóveis em prova. Vários sacos de areia tinham sido colocados no exterior das mesmas de modo a minimizar qualquer desastre resultante de uma potencial da perda de controlo por parte de algum dos participantes. Apesar da tomada de precaução, receios de consequências nefastas associadas a um incidente dessa natureza ecoavam pelos membros da Comissão organizadora, assim como pelos repórteres da revista “O Volante”, a qual salientou desde o início do planeamento das provas (na pessoa do Director da publicação, o qual tinha sido convidado a dar parecer sobre as mesmas) que as condições da Avenida Todi para acolher este tipo de evento constituíam-se como bastante limitadas. Além do mais, o alerta que havia sido dado acerca dos perigos de atravessar a Avenida Todi durante as provas aparenta não ter surtido o efeito desejado, especialmente junto das faixas etárias mais jovens com várias crianças a protagonizarem alguns dos momentos mais aflitivos do dia. Às questões já referidas aliou-se ainda a falta de altifalantes, a qual dificultou em muito o acompanhamento das provas por parte dos espectadores, não havendo maneira de rápida e eficazmente transmitir ao público quais os resultados das mesmas.

Apesar das condicionantes e como já era esperado, o público compareceu em força, acompanhando os feitos dos rápidos e modernos automóveis com devoto interesse. De acordo com “O Volante”, publicação que dedicou dois números consecutivos (169 e 170) aos eventos em Setúbal, o Quilómetro de Arranque foi a prova que “mais entusiasmo e emoção despertou”. O duelo dos Bugatti tornou-se no ponto alto do dia com Henrique Lehrfeld e Adalberto Marques, “dos melhores volantes” em eventos daquela natureza, a batalharem pelo primeiro lugar.

Ambos os automóveis correram com pneus Dunlop e óleo Castrol; Marques foi o primeiro a sair. “[O] público susteve a respiração enquanto o motor roncava. A uns 100 metros da chegada, o destemido e valente cortava o gás”. O Bugatti T35C “Maria de Lurdes” de Adalberto Marques alcançou uma média de 112,079 km/h, a qual constituiu recorde nacional quebrando o anterior estabelecido por Lehrfeld (104,681 km/h) no Quilómetro de Arranque do Campo Grande, prova na qual Lehrfeld participara com o Bugatti conduzido então em Setúbal por Adalberto Marques. Marques adquirira o T35C chassis #4930 a Lehrfeld e este, por sua vez, havia adquirido o automóvel ao Barão de Rothschild algures entre Abril e Julho de 1929 (fontes diferem).

Cortesia Arquivo da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal

A notícia da conquista de Marques espalhou-se pela audiência, a qual vibrou com a emocionante revelação do novo recorde. Seguiram-se duas passagens de Lehrfeld, as quais surpreenderam o público que esperava apenas uma por parte de cada concorrente. Lehrfeld trouxera à Avenida Todi o seu novo T35B Grand Prix chassis #4952, o qual adquirira em Julho do mesmo ano, muito possivelmente em Paris no concessionário Bugatti da Av. des Champs-Élysées. Com uma média inicialmente anunciada de pouco mais de 108 km/h para Lehrfeld, Marques é declarado vencedor, o qual recebe “aplausos e cumprimentos não só dos amigos, mas de todos”. Na categoria “Sport”, o primeiro classificado foi o Dr. Luís de Lima Faleiro ao volante de um Isotta Fraschini com uma média de 88,019 km/h.

Contudo, depois das passagens dos Bugatti e da celebração de Marques, instalou-se a polémica em redor de duas questões: a primeira inerente ao facto de Lehrfeld ter realizado a prova duas vezes em vez de uma como foi o caso dos restantes concorrentes. A decisão de permitir ao piloto uma segunda passagem acaba por não ser clara ou alvo de uma explicação oficial; a revista “O Volante” especulou que tivesse havido dúvida por parte de Lehrfeld acerca do – reduzido – espaço pós linha da meta ser ou não suficiente para parar o automóvel. Assim e por insistência do piloto, a primeira passagem não teria sido cronometrada ou sequer realizada tirando completo partido das potencialidades do Bugatti, de modo a comprovar as condições de segurança. Contudo, a publicação relata igualmente que, da parte da Comissão Desportiva do ACP, partira uma segunda justificação (de modo informal), a qual reportou que o cronómetro não teria registado a partida de Lehrfeld na primeira tentativa, sendo por isso necessária a segunda passagem. No entanto é notório que, mesmo que esse tenha sido o caso, a falta de uma explicação oficial e atempada para as duas passagens fez levantar várias sobrancelhas.

A segunda questão prendeu-se com a média final de Lehrfeld, a qual acabou igualmente por se encontrar sujeita a alguma controvérsia. Como mencionado, Adalberto Marques fora inicialmente declarado vencedor do evento; contudo, a velocidade média de Lehrfeld viria a ser oficialmente estabelecida nos 118,304 km/h e, mais tarde, seria ainda anunciada uma terceira média de mais de 124 km/h, valor improvável visto o recorde internacional naquele período, estabelecido em pista por parte de Laslo Hartman (também em Bugatti), era de 124,009 km/h, tornando uma velocidade semelhante no decorrer de um quilómetro de arranque em estrada num marco extremamente desafiante de alcançar.

Cortesia Arquivo da Biblioteca Pública Municipal de Setúbal

Adalberto Marques protestou a situação, não pela vitória de Lehrfeld, mas pelas duas passagens do piloto e também pelas diferenças substanciais nas médias anunciadas. Marques notou que “Como se pode fazer sport desta natureza? Que juízo fará o público de toda esta barafunda, quando lhe fornecem um resultado e passado alguns minutos lhe dão outro totalmente diverso?”. Marques acabaria por receber da Comissão Desportiva do ACP a mesma justificação que chegara aos ouvidos da revista “O Volante”, que uma falha no equipamento não permitira cronometrar a primeira passagem de Lehrfeld. A publicação reporta que o esclarecimento “satisfez perfeitamente” Marques.

O Quilómetro de Arranque na Avenida Todi foi apenas a primeira de uma série de vitórias para o Bugatti #4952. Lehrfeld sabia tomar partido da performance do automóvel, demonstrando as impressionantes capacidades do mesmo por ocasião próxima à prova em Setúbal quando o piloto estabeleceu um tempo recorde nacional em estrada aberta, viajando daquela cidade a Cacilhas em apenas 20 minutos. Ainda em 1930, o T35B de Henrique Lehrfeld arrecadaria vitórias nas Caldas da Rainha (Quilómetro Lançado da Recta de Tornada) e Mindelo (Quilómetro Lançado na Recta do Mindelo). Em 1933 toma a primeira posição na Rampa do Cabo da Roca e no ano seguinte vence no Circuito de Vila Real, participando igualmente em provas internacionais entre 1930 e 1937 competindo no Rio de Janeiro, em Barcelona e em La Baule.

Em 1956 o automóvel encontra novo proprietário em João de Lacerda, ditando desse modo o futuro do impressionante Bugatti como um dos mais interessantes elementos da colecção do Museu do Caramulo.

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