O mistério do Buick preto

Clássicos 11 Fev 2023

O mistério do Buick preto

Por Irineu Guarnier

Uma manhã, abrimos a janela do quarto e ele estava lá. Preto, enorme, majestoso. Era um Buick dos anos 1950, imponente como os automóveis de gângsters do cinema. Seus ornamentos cromados reluziam ao sol. Parecia um ovni pousado na ruazinha estreita onde vivíamos.
 
Um automóvel como aquele, apesar de anacrônico na metade dos anos 1960, era um objeto de sonho para nós, meninos cujos pais andavam a pé ou de ônibus.
 
Meu pai tinha paixões pelos Chevrolet Impala, Bel-Air, Ford Thunderbird e outros carrões americanos importados, todos meio fora de moda diante das últimas novidades da indústria automobilística brasileira, mas ainda cheios de charme.
 
Minha mãe, mais sintonizada com a época em que vivia, sonhava com um Simca Tufão verde-água que uma rede de fármacias sorteava numa promoção…Naquele tempo, porém, não podíamos comprar sequer um Fusca (Carocha), de modo que o transatlântico negro estacionado em frente a nossa casa fascinava a todos.
 
Ninguém sabia explicar como o carrão chegara até ali. Ninguém viu quem o trouxera, nem ouviu algum ruído. Anoiteceu e ninguém veio buscá-lo. Na manhã seguinte ele ainda estava lá, no mesmo lugar onde se materializara.
 
Uma semana transcorreu e não apareceu ninguém para levar o Buick preto – em torno do qual se formou uma atmosfera de mistério que atiçava a curiosidade de crianças e adultos. Seria um carro roubado? Teria sido usado em algum assalto? Alguém chegou a conjeturar que haveria um corpo escondido no porta-malas.
 
Como a curiosidade fosse maior que o medo, decidimos – eu e mais alguns meninos e meninas da vizinhança – explorar o misterioso Buick. O acaso nos ajudou. Um quebra-vento destravado facilitou a tarefa de abrir uma porta. Sem a menor cerimônia tomamos posse do carrão-fantasma.
 
Daquele em diante nossa vida mudou. O futebol foi esquecido. As brincadeiras de rua também. Gazeávamos a aula ou saíamos mais cedo do colégio para desfrutar por mais tempo o novo brinquedo.
 
Bancos de couro, painel em aço ornamentado, um imenso volante com detalhes cromados, o velho Buick tornou-se um veículo fantástico. Com ele, viajávamos pelo espaço e pelo tempo. Íamos em segundos ao Velho Oeste, o Buick convertido em diligência, cercado por apaches, ou então ele podia ser a cápsula de um foguete Apollo a caminho da lua. Nos seus assentos confortáveis como sofás, líamos gibis do Zorro e do Fantasma e comíamos bergamotas ao som dos Beatles, de Ronnie Von e Roberto Carlos. O Buick preto era o lugar onde nos sentíamos então completamente felizes.
 
Um dia vieram homens circunspectos, de chapéus e capas de gabardine. Rondaram o carrão, trocaram olhares e meneios de cabeça, e, sem qualquer explicação, nos expulsaram do “nosso” Buick. No fim da tarde, um velho caminhão-guincho arrastou pela ruela de paralelepípidos irregulares o nosso “brinquedo”.
 
Assistimos à cena calados, com um nó na garganta. Não houve queixas, porque de certo modo sabíamos que algum dia aquilo, afinal, teria de acontecer. Mas quando o Buick preto desapareceu na volta da esquina ninguém conseguiu conter o choro.
 
Fotografia: Eduardo Scaravaglione


Irineu Guarnier Filho é brasileiro, jornalista especializado em agronegócios e vinhos, e um entusiasta do mundo automóvel. Trabalhou 16 anos num canal de televisão filiado à Rede Globo. Actualmente colabora com algumas publicações brasileiras, como a Plant Project e a Vinho Magazine. Como antigomobilista já escreveu sobre automóveis clássicos para blogues e revistas brasileiras, restaurou e coleccionou automóveis antigos.


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