Na plenitude da casualidade: Uma ligação de Vila Real a Peso da Régua

Clássicos 07 Jan 2023

Na plenitude da casualidade: Uma ligação de Vila Real a Peso da Régua

Por José Brito

Diz-se que devemos aproveitar as pequenas coisas e casualidades da vida, e que essas são as que, na sua plena aglomeração, nos proporcionam o maior prazer. Se assim é, devo dizer que a experiência seguidamente retratada não se trata de uma pequena aleatoriedade ou feliz casualidade, mas antes da aglomeração destas: Vila Real-Peso da Régua, Nacional 2, 22h43, Corvette C3, BB King no rádio, com o conhecido de um conhecido. Com o que começou como uma simples conversa de café entre recém-conhecidos, termina numa experiência de firmamento entre homem e máquina.

Numa noite como qualquer outra, em que além de se falar de automóveis, trabalho, ou bola, se poderá estabelecer um ou outro adicional conhecimento, surgem por vezes as tais casualidades que nos levam a pensar estarmos no local certo, à hora certa: um forte alvoroço na escuridão da noite, faróis incandescentes no horizonte, e uma bela vista para olhos cansados, um Chevrolet Corvette C3 L82. Para gáudio superior, a companhia desloca-se para junto do Corvette e cumprimenta saudosamente o condutor, velhos amigos. Numa conversa de uma coisa leva à outra, teria que surgir à baila a máquina perante os nossos olhos, e uma pergunta quase caída do Olimpo: “Vamos dar uma volta?”.

Perto das onze da noite às portas de Vila Real e do Peso da Régua, a única coisa capaz de se ouvir no breu da serra do Marão é o avassalador roncar do V8 L82. O destino? À altura não havia, só sabia que tinha que estar de volta ao litoral norte para marcar presença no AutoClássico na manhã seguinte. Ao partilhar a desconfiança em cumprir horários e ter um número de horas de sono apropriado, fui assegurado: “Não te preocupes, enquanto houver “gota” estás lá com tempo, eu sei todas as estações de serviço num raio de 50 quilómetros”. “Aos comandos de tal fera, pudera”, pensava eu.

Damos por nós a dialogar a bom ritmo acerca das diferentes gerações do mítico clássico americano, ao que é partilhada uma opinião da qual não consigo discordar. Os Corvettes (como muitos outros veículos apelativos ao mortal Petrolhead) têm algo de um conflito interno relativamente ao seu real propósito, e ao que as pessoas pretendem verdadeiramente. Fanáticos de trackdays, deambulantes a combustão da internet, e redactores automóveis aprovarão contundentemente um Grand Sport, babar-se-ão por um ZR1, e agitarão prontamente a cabeça num sentido ascendente e descendente à convicção da Chevrolet em manter as transmissões manuais. Após isto, compram um Miata. Os reais clientes, por outro lado, querem transmissões automáticas, versões descapotáveis e veículos que não lhes “mordam os calcanhares” de cada vez que calquem o acelerador com mais firmeza. “Aqui começa a ingratidão para com a incerteza do construtor”, comenta-se.

Prossegue a tertúlia para a estrada propriamente dita. Actualmente olha-se para a Nacional 2 como o Santo Graal das estradas portuguesas, a nossa Route 66, suplantando, para muitos, a afamada Nacional 2, declarada pela Porsche como melhor estrada do mundo em 2015. Pessoalmente, creio que tudo depende do cenário. Recordo-me perfeitamente da primeira vez de tal sensação de plenitude de condução: Paredes de Coura, Nacional 301, meio de tarde de Outono, Alfa Romeo GT Junior 1300, e Raiders on the Storm na pequena coluna portátil que trazíamos (motivos para uma futura história). Mais um ponto de acordo na já demorada conversa.

Do retorno da impossibilidade de esconder um sorriso de orelha a orelha, aparentam os deuses sorrir novamente: “Leva-la de volta?”. Chego então à tal “sensação de plenitude”. Logicamente que, aos comandos de um American Muscle, o conceito de “curva rápida, não levantes”, transforma-se em “atenção, travagem moderada”, mais que não seja pela irregularidade já típica de estrada nacional: ora asfalto digno de autobahn, ora semi offroad. O brilharete é feito à saída da curva, mais que não seja pela eterna traseira fugidia que, à mínima aceleração mais precoce, não hesita em demonstrar toda a sua alegria, e pelo rebombar do poderoso V8, qual relâmpago. Certamente não é a estrada perfeita para o C3, mas o ambiente ideal.

Reza a história que BB King, o Rei do Blues e inspiração para nomes como Jimmy Page e Eric Clapton, ao ver o bar em que tocava em Twist, Arkansas, envolto em chamas, e sem um segundo pensamento, correu para dentro do mesmo, apenas regressando ao exterior com a sua Lucille. Ao conduzir o “Vette”, e enquanto falávamos um pouco da discografia do virtuoso, é-me partilhada uma história com pontos em comum, com a devida diferença no local (Avintes), na pessoa (primeiro proprietário do C3), e no final (Lucille foi resgatada sem dano, ao Corvette trataram-se ferimentos ligeiros ao nível de interiores).

É após esta partilha que o tal afamado momento se dá: uma extensão de recta com cerca de um quilómetro, o americano bem alinhado, o pé bem assente na “tábua”, um inconfundível ronronar de exaustão que abafa tudo em seu redor, a então tímida voz de Riley Ben King a entoar “The Thrill is Gone”, e a minha inevitável tentativa de evitar compreender que o meu turno de condução chegava ao fim.

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