Não há automóvel que não tenha

Clássicos 27 Nov 2022

Não há automóvel que não tenha “estória”

Por Fernando Diniz

Quando fiz o meu exame de condução, já tinha a sentença lida: “Tiras a carta, compras um automóvel. Não penses que te empresto o meu!” E assim aconteceu.

 

O primeiro automóvel que vi à venda, numa transversal da avenida do Brasil, um vendedor de café, corria o ano de 1980, era um Triumph TR4 Surrey Top, vermelho e preto. Entusiasmado, cheguei a casa e comentei com o meu pai o que tinha visto e o meu entusiasmo…rapidamente o perdi, pois o “Ok” do chefe de família não veio, antes sim o comentário “se partes a cambota, não há peças e mandar vir de Inglaterra é uma fortuna…” (hoje seria muito diferente). Assim foi traçado o destino do meu primeiro automóvel, um Fiat 128 azul escuro de duas portas, com as rodas da frente “compensadas”, cerca de dois centímetros de desvio no paralelismo, um moderno sistema de admissão banhado a óleo, tal não era a quantidade do mesmo líquido que saía do respirador do motor para o filtro de ar, parecia um compressor e equipado com acelerador de mão, algo que se puxava no tablier, rodava-se para um dos lados e prendia a posição do pedal de acelerador. Um pouco mais tarde reparei que também tinha um sistema de climatização muito à frente…ou seja muito em baixo…alguns buracos no piso.

 

Nesta época compravam-se automóveis em segunda mão e vendiam-se passados uns tempos para ganhar mais uns trocos. Valorizações que já não voltam. O segundo automóvel passou pelo mesmo crivo. Um Alfa Romeo 1750 GTV, azul escuro, lindo, que estava num stand de automóveis na avenida Rovisco Pais. Novamente assembleia familiar e a assombração da cambota voltou à agenda do dia. Mais uma vez hoje não seria mesmo assim! Por isso, o meu segundo automóvel foi um Fiat 127, primeira série, o inesquecível AT-16-44. Equipei-o com distribuição Abarth, pneus mais largos na frente e mais estreitos na traseira e um volante exageradamente de pequeno diâmetro. Sentia-me um verdadeiro mestre do travão de mão e das curvas em deriva às quatro rodas.

 

Seguiu-se outro 127 mas na versão 900C. Desta vez não tive que submeter a decisão da aquisição à assembleia familiar, por isso não foi tema de conversa a referida assombração. Mas o meu entusiasmo mantinha-se e os automóveis desportivos eram uma paixão. Ainda dentro da marca, comecei a sonhar com o 124 Spider. Procurei, procurei, e não conseguia encaixar no meu orçamento. De repente surgiu uma oportunidade, dentro do grupo italiano: Lancia Fulvia Coupé 1,3S de 1973. Quando cheguei a casa já o levava comprado, foi o fim do assombramento da cambota. O Fulvia era espectacular, travões de disco à quatro rodas, ventilados à frente, caixa de cinco velocidade sendo a primeira para trás, dois carburadores duplos Solex 32 PHH de abertura simultânea, quatro cilindros em V a 13º, cerca de 90cv, suspensões da frente de triângulos sobrepostos com mola de carroça transversal, atrás eixo rígido com molas de carroça e amortecedores onde trabalhava uma barra panhard, um habitáculo de 2+2 lugares, sendo que os traseiros estavam registados no livrete como lugares para crianças cor “bordeaux”. Era fabuloso! Tecnicamente refinado e de design muito limpo.

 

 

Mais tarde mudei-lhe a cor para “rosso corsa”, igual aos Fulvia de fábrica. Encontrei algures numa sucata na Margem Sul, o que restava de um Fulvia 1600 HF, comprei as suspensões da frente e o motor 1600. Passei a ter um Fulvia com cerca de 115cv e as respectivas suspensões do 1600 HF. Faltavam as portas, capot de motor e tampa da mala em alumínio. Passou a ser impressionante. Por curiosidade refira-se que foi este pequeno V4 de 1.6 litros o escolhido para o início dos testes do Lancia Stratos em 1971. Com estas aventuras todas o automóvel acabou por sofrer uma pequena intervenção no que respeita à reparação de alguns processos evolutivos de oxidação da chapa, embaladeiras e pilares do tejadilho.

 

 

Durante mais algum tempo foi o meu automóvel à prova de tudo, veículo do dia-a-dia, e nas “horas vagas” ainda participou num Rally da Camélias e num Rallye Verde Pino.

 

 

Com o decorrer do tempo comecei a ter consciência dos disparates que tinha vindo a fazer com o Fulvia. Voltei a montar o motor original, e fruto de algumas opções de vida ficou durante muito tempo parado numa garagem.

 

 

O passar do tempo e a sua não utilização trouxeram o início de novo calvário, as linhas de travagem tornaram-se incapazes de cumprir a sua missão. Depois tive de o tirar da garagem e passou alguns anos na “garagem sol e estrela”, até que chegou recentemente o momento de tomar nova decisão: Ou sucata, ou recuperar. Fruto de uma conjugação de factores e em especial da ajuda dos amigos Artur Rocha, Luís Vasconcelos e Fernando Martins, depois de desmontar e deixar apenas a carroçaria, transportámos o Lancia para Cabeço de Vide, para a oficina de restauro do ex-responsável pela chaparia da antiga equipa Renault Competição, o senhor Vitorino, onde admirei alguns trabalhos já efectuados, um Mini, um Austin-Healey, este último merecedor de um prémio num concurso no Reino Unido.

 

 

 

Infelizmente, um grave problema de saúde afectou o senhor Vitorino, tornando inviável a continuidade do projecto por terras alentejanas. Colocámos novamente a carroçaria do Lancia no reboque e trouxemo-lo de volta para Lisboa, mais concretamente para a zona de Sintra, onde encontramos uma fantástica equipa de restauro, a True Legend. Um templo do restauro.

 

 

 

Foi aqui que se refez a carroçaria do Fulvia. Uma intervenção de restauro tem uma abordagem diferente de uma intervenção de manutenção corrente. Para dar continuidade ao projecto, definiu-se o modelo operacional. Inventário das desgraças, consultas ao mercado, comparativo de preços e decisão final de aquisição ou reparação do material.

 

 

Como qualquer automóvel italiano da época, a chapa é um dos pontos mais vulneráveis, e foi por aí que se iniciou o trabalho de recuperação. Qual paciente nas mãos de um cirurgião, submeteu-se o Lancia aos cuidados do senhor Alberto, um excelente técnico de chaparia, que tem uma leitura perfeita da intervenção a realizar. Processo de elevado rigor, bloquear a carroçaria para não esticar ou empenar, descravar, cortar o que está mal, substituir por peças novas ou fazer à mão, acertar medidas e conferir as folgas. Comparo a trabalho de relojoeiro.

 

 

De forma organizada, sistemática e metódica, assim foi avançando a operação. Concluída a primeira fase, a recuperação da carroçaria foi efectuada na perfeição.

 

Seguir-se-á a parte eléctrica, a mecânica, e a suspensão.

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