As aventuras de um Boeing de carga na Nigéria

Arquivos 02 Nov 2022

As aventuras de um Boeing de carga na Nigéria

Por José Correia Guedes

Durante um período da década de 80 a TAP utilizou um dos seus já algo cansados Boeing 707C em operações do tipo “full cargo” que consistiam em transportar exclusivamente carga para vários pontos do globo. Era um tipo de serviço que me agradava particularmente por várias razões: em primeiro lugar porque o facto de não haver passageiros tornava a operação mais flexível em termos de horários e responsabilidades e depois porque voávamos para lugares que nada tinham a ver com a rede comercial da companhia. Era uma actividade meio “pirata”, gerida por fax e telegrama, que deixava às tripulações uma quase total liberdade de acção mas que também obrigava a uma elevada dose de criatividade para ultrapassar os obstáculos que sempre iam surgindo, nomeadamente em países do chamado terceiro mundo.
 
Por esses dias um dos nossos destinos era Lagos, na Nigéria, já então um dos países mais corruptos e inseguros do mundo. Não me recordo que tipo de carga levávamos para para tal lugar mas sei que para lá se efectuaram vários voos, dos quais me “tocaram” dois que são a base desta história.
 
No primeiro destes serviços para que fui escalado foi com surpresa que verifiquei durante o “briefing” em Lisboa que ao comandante do serviço era entregue um envelope recheado com notas de dólar, especialmente cédulas de 10 e 20. Destinavam-se a gratificar os carregadores do aeroporto, os quais até então demoravam várias horas para descarregar e carregar o avião, provocando grandes prejuízos à TAP uma vez que o aparelho em causa era necessário para outros voos. Apesar da “gratificação”, dessa vez a operação de descarga / carga em Lagos demorou uma eternidade. Melhor que sem gratificação, mas uma eternidade mesmo assim. Aproveitei então para dar uma volta pelo novo terminal, uma réplica fiel do aeroporto de Schipoll, em Amsterdam, por esse tempo considerado a referência mundial em termos de aeroportos . Era tudo igual. Até tinha dois limpa neves, equipamento que como se sabe é muito necessário em cidades cuja temperatura média anual anda pelos 30 graus centígrados. Mas como o aeroporto foi comprado “chave na mão” ao mesmo consórcio que construiu Schipoll, lá vieram os limpa neves no pacote. Invulgar? Nem por isso. Na Nigéria tudo era possível.
 
Um par de semanas depois fui novamente escalado para o voo cargueiro com destino a Lagos. Uma vez chegado ao despacho operacional da TAP, em Lisboa, lá fiz a pergunta da praxe: “Então e os dólares, levam-se ou quê?”
 
“Nada disso”, responderam. “Vocês agora levam meia dúzia de caixas com garrafas de vinho, daquelas doses individuais que se servem aos passageiros de classe económica. Já fizemos isso em voos anteriores e o avião foi descarregado em menos de um fósforo”.
 
“Mas aquilo é um país muçulmano!”, disse eu com espanto do alto da minha abençoada ingenuidade. “Eles não podem beber álcool. Não haverá problemas?”
 
Quais problemas qual nada. Lembro-me que minutos depois de termos aterrado em Lagos, ainda o avião se dirigia para o estacionamento e já se via um grupo de pessoas a correr na nossa direcção fazendo o gesto universal que consiste em enfiar o polegar na boca e fazer “beicinho”. Ou seja, em linguagem gestual, “no wine, no work”. Perceberam?
 
Quanto tempo demorou a escala? Muito pouco. Alguém no departamento comercial da TAP tinha tido uma ideia genial e os resultados estavam bem à vista.
 
Nota: A fotografia é do mesmo autor do texto e foi obtida sobre o Alentejo durante um voo de treino (base) em Boeing 707.

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