Arquivos • 07 Mai 2024

Escrever sobre Gilles Villeneuve é, para mim, ainda hoje, uma questão de paixão: lembrá-lo torna-se quase doloroso, pois nunca mais vi nenhum outro piloto entregar-se da forma como ele fez, como ele só sabia fazer, à sua paixão – pilotar um automóvel, fosse ele qual fosse, nos limites absolutos. Mas, afinal, quem foi Gilles Villeneuve? Como nasceu a semente dessa paixão?
Da neve ao asfalto
Joseph Gilles Henri Villeneuve nasceu no Québec, na pequena cidade de Saint-Jean-sur-Richelieu, a 18 de Janeiro de 1950. O seu pai tinha o estranho nome de Seville e, desde cedo, foi um dos principais apoiantes do filho. Aos 20 anos, casou-se com Joann Barthe e, desde então, nunca deixou de levar a família consigo: primeiro, a mulher; depois, os dois filhos, Jacques, nascido em 1971 e Melanie, nascida em 1973. Tal como de tudo o mais quando recordo Gilles, lembro-me bem disso – e do terror que Joann tinha em que o marido se magoasse… especialmente quando fazia as loucas corridas em estrada aberta, mesmo com a família toda abordo, para gáudio dos pequenos. Ou, então, quando, sozinho, decidia fazer corridas de Ferrari, pelas auto-estradas italianas, com o seu amigo DidierPironi: quem levantasse o pé do fundo era… bom, aquilo que dizemos aos amigos, nessas ocasiões! Gilles Villeneuve, mal saiu da escola técnica, meteu-se a fazer corridas de aceleração, tipo dragsters, com o seu Ford Mustang de 1967. Depois, aborreceu-se e inscreveu-se na escola de pilotagem de Jim Russell, no circuito de Mont-Tremblant, para poder ter licença desportiva. Comprou um velho Fórmula Ford com dois anos e venceu sete das dez corridas do campeonato regional do Québec, em 1973. No ano seguinte, subiu à Fórmula Atlantic, apesar de, como sempre, estar ‘curto’ de dinheiro.
Das motos de neve aos fórmula
Entretanto, sempre atraído por desafios cada vez mais radicais, decidiu fazer corridas de motos de neve, vulgarmente chamadas snowmobile. Foi aqui, nas pistas brancas, que definiu o estilo generoso e genialmente louco da sua pilotagem futura; controlar uma máquina nos limites máximos de velocidade e aderência era a razão de ser da sua paixão; foi sempre assim, na sua carreira de menos de uma década. Aliás, ele mesmo acreditava que o seu sucesso se devia a esta experiência: “Todos os invernos, tenho garantidos três ou quatro sustos – e estou a falar de ser atirado para o gelo a uns 160km/h! E estas coisas derrapam um bocado, o que me dá uma enorme capacidade de controlo. Além disso, a visibilidade é terrível! A menos que vás na frente, não se vê nada, com toda aquela neve a cair! É bom para as reações – e acabou com todos os meus receios sobre pilotar à chuva.” Em 1974, venceu mesmo o Campeonato do Mundo de Snowmobile! Em 1975, Villeneuve venceu a sua primeira corrida de Fórmula Atlantic, debaixo de chuva torrencial, no Gimli Motorsport Park. No ano seguinte, dominou o campeonato de Fórmula Atlantic, com uma equipa chamada Ecurie Canada – mesmo tendo ficado a ver do muro das boxes a última corrida, em Motorsport, pois não havia dinheiro para mais! Viria a repetir o título em 1977.
As notícias das suas façanhas depressa saíram das fronteiras do seu país: ainda em 1976, em Trois Rivières, humilhou James Hunt e mais algumas estrelas da Fórmula 1 numa prova de Fórmula Atlantic. Hunt falou dele com entusiasmo na McLaren– e, a meio do ano seguinte, a equipa chegou a um acordo com ele, por cinco Grandes Prémios, levando-o logo para correr em Silverstone, no Grande Prémio da Grã-Bretanha, ao lado de James Hunt, campeão em título, e de Jochen Mass, mas com um velho M23, em vez dos bem mais competitivos e atuais M26. Na Europa, ninguém sabia quem era Gilles Villeneuve, o seu nome nunca tinha sido falado em lado nenhum; na verdade, nunca tinha corrido deste lado do Atlântico. Mas, depois da sua primeira prova de Fórmula 1, nunca mais ninguém o esqueceu: na estreia, conseguiu o nono lugar nos treinos, batendo Moss; e, na corrida, fez a quinta melhor volta, mas terminou em décimo primeiro, a duas voltas, depois de problemas de aquecimento do motor do McLaren.
O filho pródigo do cemmendatore Enzo
Gilles Villeneuve estreou-se no dia 16 de Julho de 1977. Menos de um mês depois, em Agosto, Enzo Ferrari falou dele: até no seu físico miúdo e nervoso, mas principalmente na sua entrega, no seu coração do tamanho do mundo e na sua enorme coragem, fazia-lhe lembrar o seu piloto mais querido, Tazio Nuvolari. Então, aproveitando da melhor forma o facto de Teddy Mayer ter sido proibido, pela Marlboro, de continuar a utilizar Gilles nesse ano, por ficar demasiado caro, fez-lhe uma proposta. E, a meio desse mês, Villeneuve voou para Itália e chegou a Maranello. Uma sessão de testes em Fiorano deixou definitivamente convencido o commendatore, apesar do pequeno canadiano ter feito muitos erros e rodado em tempos um pouco lentos; no final, saiu com a certeza de estar presente nas duas últimas corridas desse ano, ao volante de um Ferrari.
A chegada de Gilles à Scuderia foi uma das razões que fizeram Niki Lauda bater com a porta, antes do Grande Prémio do Canadá, onde o novo herói local saiu de pista ao derrapar no óleo deixado por outro piloto, a quatro voltas do final, ficando mesmo assim classificado em 12º lugar. No Japão, Villeneuve envolveu-se num grave acidente com Ronnie Peterson, pela quinta volta: ambos saíram de pista, com o Ferrari a passar para lá dos rails, caindo numa zona onde alguns espectadores estavam colocados, apesar de ser proibido – morreram dois e dez ficaram feridos. Após o inquérito, Villeneuve foi ilibado de qualquer responsabilidade. Mas, apesar disso, ficou aberta a porta à lenda.
O final do mito
Nos quatro anos seguintes, Gilles Villeneuve distribuiu o seu talento pelas pistas de Fórmula 1 de todo o Mundo. Ganhou seis Grande Prémios e, em 1979, aceitou as ordens que lhe foram dadas, deixando Jody Scheckter vencer o Campeonato do Mundo: venceu três provas, tantas quanto o sul-africano, mas perdeu o título por quatro pontos, terminando o ano em segundo lugar. O último ano, 1982, foi o fim. Desistiu nos dois primeiros Grandes Prémios, África do Sul e Brasil; foi desclassificado no GP dos Estados Unidos-Oeste, em Long Beach, porque o seu Ferrari tinha a asa traseira maior que o permitido, depois de ter acabado em terceiro lugar. San Marino foi o palco da sua célebre disputa com Didier Pironi, seu colega de equipa e que ele considerava como um irmão, depois do francês o ter passado, vencendo a corrida contra as ordens de equipa. Então, chegou a quinta prova do Mundial, o Grande Prémio da Bélgica, no circuito de Zolder. No último treino de qualificação, estava mais lento 0,1s que Pironi; a oito minutos do final, a seguir à primeira chicane, encontrou Jochen Mass a rodar muito mais lento, com o March. Este viu o Ferrari a aproximar-se e, na entrada para a curva Terlamenbocht, chegou-se para o lado direito, dando a linha ideal. Ao mesmo tempo, Villeneuve decidiu passar o carro mais lento pelo lado… direito.
O embate foi inevitável e violento, entre os 200 e os 225 km/h; catapultado no ar, o Ferrari caiu de nariz na pista, cerca de 100 metros mais adiante, desintegrando-se. Ainda fixo ao banco, mas já sem capacete, o piloto foi lançado contra as redes de proteção. Vários pilotos pararam no local e John Watson e Derek Warwick retiraram Villeneuve das redes, com o rosto já azul. O primeiro médico chegou 35 segundos depois e encontrou o piloto sem respirar, mas ainda com o coração a bater. Entubado, foi levado primeiro ao centro médico da pista e depois, de helicóptero, para o hospital da Universidade de São Rafael, onde foi confirmada uma fratura no pescoço. Quando Joann chegou, as máquinas foram desligadas. Eram 21h12 e Gilles Villenueve viveu 32 anos – mais dois do que aqueles que ele dizia ter, desde que falsificou a data de nascimento para parecer mais novo perante Enzo Ferrari. Escritas para sempre, ficaram as palavras que ele tinha dito, ainda nessa mesma manhã: “Nunca penso que me posso magoar seriamente. Se pensar que isso pode suceder, como posso fazer o meu trabalho? Nunca se conseguirão ganhar oito décimos se estivermos a pensar num acidente, nunca conseguiremos ser tão rápidos como podemos ser. E se não conseguirmos fazer isso, então não somos pilotos de automóveis!”
Sobre ele, um chocado Jody Scheckter afirmou: “Vou sentir a falta do Gilles por duas razões. A primeira, porque era o homem mais rápido de sempre na história do desporto automóvel. A segunda, porque era o homem mais genuíno que alguma vez conheci.”
Texto: Marques dos Santos (in Autosport.sapo.pt)