Automobilia • 20 Jan 2020
“Ferrugem no sangue”: As histórias do outro lado do Atlântico chegam a Portugal
Por Irineu Guarnier
O pessoal mais jovem que está chegando agora ao antigomobilismo e ainda não faz ideia de como era difícil restaurar um automóvel clássico no Brasil antes do advento da internet. Conseguir peças antigas requeria do entusiasta um périplo exaustivo por ferros-velhos e doses maciças de paciência.
Às vezes, levava-se meses, ou até anos, para se encontrar aquele volante, farol, emblema ou espelho retrovisor que faltava para completar uma restauração. Os “mercados de pulgas” dos encontros de clássicos eram os melhores lugares para garimpar, mas achar a peça certa era muito mais uma questão de sorte do que de persistência.
Certa vez eu procurava uma pequena lente da lâmpada da placa traseira de um Karmann Ghia TC 1973 (modelo que a Volkswagen só fabricou no Brasil) que acabara de restaurar. Mesmo no início dos anos 2000 ainda era possível encontrar no comércio de retalho muitas peças da linha Volkswagen que serviam para aquele automóvel, mas aquela minúscula lente quadrada, eu não conseguia achar em lugar algum.
Foi então que descobri um estabelecimento especializado em faróis, sinaleiras e lâmpadas. A dona da pequena loja, atrás de um balcão de madeira gasto pelo tempo, era uma senhorinha de mais de 80 anos, frágil, mas dotada da sagacidade de quem passou uma vida comerciando. Mostrei-lhe a outra lente do par e perguntei-lhe se, por acaso, ela ainda teria uma igual em estoque.
Um atendente fez uma rápida busca e não a encontrou. A senhora me disse que havia 30 anos ninguém mais procurava por aquele item. Mas ela lembrava de que teria a pequena lente guardada em um lote de mercadorias fora de catálogo, no sótão de sua casa. Não acreditei. Mas ela me pediu para confiar na sua memória e passar na loja no dia seguinte.
Quando o comércio abriu, no outro dia, lá estava eu – convicto de que a velhinha se confundira e de que não teria o que eu buscava. Como ela poderia lembrar de algo tão pequeno que havia mais de três décadas não vendia? Mas me enganei. Sorridente, ela segurava em suas mãozinhas enrugadas a caixa de papelão lacrada com a peça original. Não me contive e comemorei o achado.
Então veio a surpresa: o preço deveria ser 20 ou 30 vezes o de uma lente similar para qualquer modelo moderno. Reclamei. Por que tão caro? Era algo tão insignificante, apenas um pedacinho de acrílico… A senhorinha me encarou com um sorriso maroto, pegou a caixinha de volta da minha mão, e enquanto eu já sacava o cartão para fazer o pagamento, ela me disse, “Porque só eu tenho”.
Irineu Guarnier Filho é brasileiro, jornalista especializado em agronegócios e vinhos, e um entusiasta do mundo automóvel. Trabalhou 16 anos num canal de televisão filiado à Rede Globo. Actualmente colabora com algumas publicações brasileiras, como a Plant Project e a Vinho Magazine. Como antigomobilista já escreveu sobre automóveis clássicos para blogues e revistas brasileiras, restaurou e coleccionou automóveis antigos.
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