Automóveis  injustiçados

Clássicos 07 Abr 2022

Automóveis injustiçados

Por Irineu Guarnier

A linha que separa a má qualidade, comprovada, e da má fama injustificada é muito tênue na indústria automotiva mundial. A história mostra que, por diversas razões, bons automóveis acabaram enterrados na vala comum dos projetos reconhecidamente ruins.

Seja porque fossem muito avançados para sua época, seja por problemas de comunicação da indústria com os consumidores, ou até mesmo por equívocos dos departamentos de marketing das montadoras, alguns veículos muito bem feitos tiveram um destino que não mereciam. Alguns foram reabilitados por coleccionadores de hoje, outros jamais se recuperaram da péssima fama que lhes foi imputada por razões alheias à sua qualidade. 

O caso do Chevrolet Corvair é emblemático. Lançado em 1960, como uma alternativa norte-americana aos automóveis importados europeus de motores traseiros refrigerados a ar, como os Porsche e os Volkswagen, a GM fez algo inédito: instalou um motor boxer aircooled na traseira do seu modelo “compacto”. O Corvair era um dos mais belos automóveis do seu tempo e teve uma grande família: coupé, sedan quatro portas, conversível, station wagon e até uma versão pick-up.


Mas havia um problema de projecto que logo se revelaria perigoso. Com muito peso sobre o eixo posterior, o veículo apresentava tendência sobresterçante (saída de traseira) em curvas. Houve acidentes em decorrência dessa dinâmica instável. O problema podia ser facilmente resolvido com uma calibragem correta dos pneus: 30 libras de pressão atrás e 19 na frente. Mas aí entrou em cena o célebre advogado dos consumidores norte-americanos Ralph Nader, que denunciou a suposta insegurança do Corvair em um livro devastador – “Unsafe at Any Speed (“Inseguro em Qualquer Velocidade”). A ruína do automóvel foi inevitável.

A verdade não era bem essa. Respeitáveis engenheiros independentes da época contestaram as alegações de Nader. A GM redesenhou a suspensão traseira para evitar possíveis “escapadas” traiçoeiras. O suposto problema foi sanado. O automóvel ficou perfeito. “Defeito” semelhante acompanhou boa parte da trajetória do Porsche 911 – mas não impediu que o modelo alemão se tornasse um dos esportivos mais desejados de sempre. Já o Corvair não teve a mesma sorte do 911. E em 1969 a sua produção foi “descontinuada”.

Outro caso de fracasso injustificado, nos Estados Unidos da America, foi o do Ford Edsel. Lançado em 1958, após dois anos de intensiva campanha publicitária que exaltava as características “revolucionárias” do modelo, o Edsel revelou-se na verdade apenas mais um bom automóvel da Ford. O excesso de expectativa certamente contribuiu para a frustração dos consumidores. Mas também é verdade que o veículo tinha um problema de design: a grade frontal em forma de fenda vertical lembrava um órgão sexual feminino. Ou uma coleira de cavalo, para os menos maliciosos. O Edsel virou piada.

A Ford ainda tentou salvar o modelo redesenhando a dianteira – mas o modelo estava condenado. Dois anos após o seu lançamento, a produção foi suspensa. Uma pena, porque especialistas da época confirmaram a excelência do projeto. Hoje, um Edsel é peça valiosa em qualquer colecção particular ou museu automotivo que se preze.

No Brasil, nenhum veículo carrega por mais tempo a injustificada fama de um automóvel mau do que o Fiat Marea. O sedan da Fiat chegou ao Brasil em 1998, importado da Itália, com a difícil missão de substituir o bem-sucedido Tempra. Era equipado com os revolucionários motores Fivetech 2.0 e 2.4 litros de cinco cilindros e tinha até uma versão turbo. Foi recebido com entusiasmo pelo mercado. Mas logo começaram os problemas.

A própria Fiat orientou seus clientes a fazerem a primeira troca de óleo somente aos 20 mil quilômetros. Na verdade, isso poderia funcionar bem na Europa, mas esta era quilometragem demais para um país tropical como o Brasil, que ainda tinha 22% de etanol misturado à gasolina, na época. Isso acabou levando muitos Marea precocemente à oficina.

Houve ainda um agravante: as concessionárias não tinham mecânicos bem treinados para mexer no sofisticado motor. Nas oficinas particulares, a assistência era ainda pior, porque faltava ferramentas específicas para mexer neste tipo de motor. Muitos propulsores apresentaram quebras prematuras e precisaram ser abertos. O Marea jamais se livraria do apelido de “automóvel bomba”. Mesmo depois de sanado o problema, e até de ser equipado com propulsores mais simples de 1.6 e 1.8 litros de quatro cilindros, a má-fama permaneceu colada ao ótimo Marea até sua melancólica saída de cena, em 2008.

Piadas e memes à parte, quem conhece automóveis sabe que o Marea era um veículo veloz e muito avançado tecnologicamente para o início dos anos 2000 – tanto que ainda hoje possui uma legião de fãs no país. Uma station wagon Marea Weekend chegou a participar três vezes nas Mil Milhas de Interlagos, uma das provas mais tradicionais do automobilismo brasileiro, de 2001 a 2003. E não fez feio para um “automóvel de família”. Terminou em quarto lugar na Categoria 1 nos dois últimos anos em que competiu, perdendo apenas para modelos da marca Porsche.

Outros bons automóveis feitos no Brasil também acabaram com suas reputações manchadas. Na década de 1960, um Fusca com tecto solar ganhou o apelido nada lisonjeiro de “Cornowagen” – e não durou dois anos no mercado.

O Renault Dauphine – veículo de origem francesa valente no dia a dia das ruas e nas pistas de competição – chegou a ser apelidado de “Leite Glória”, marca de leite em pó cujo slogan era “Desmancha sem bater”. Na verdade, a suspensão do veículo, projectada para as boas estradas europeias, sofreu nos primeiros tempos com as péssimas condições das ruas e rodovias brasileiras. Culpa doveículo? Também neste caso, claro que não! O tempo, felizmente, deu razão a quem acreditou na eficiência de muitos desses modelos e fez justiça – ainda que tardia – a seus projetistas.

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Fotografias: Eduardo Scaravaglione

Irineu Guarnier Filho é brasileiro, jornalista especializado em agronegócios e vinhos, e um entusiasta do mundo automóvel. Trabalhou 16 anos num canal de televisão filiado à Rede Globo. Actualmente colabora com algumas publicações brasileiras, como a Plant Project e a Vinho Magazine. Como antigomobilista já escreveu sobre automóveis clássicos para blogues e revistas brasileiras, restaurou e coleccionou automóveis antigos.

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