Figueira da Foz - Estoril: Um passeio para automóveis pré-guerra

Eventos 22 Dez 2021

Figueira da Foz – Estoril: Um passeio para automóveis pré-guerra

Por Joel Araújo

Para vos contar esta história, vamos ter que recuar no tempo, e não é trivial o que vos peço. Afinal de contas já estão vocês habituados: Todos os dias o fazem ao ler as páginas deste site, revisitando feitos heróicos ao volante dos nossos pilotos e suas máquinas de competição das décadas de 60, 70 e 80 e até 90.

Mas para este texto, preciso que recuem um pouco mais. Regressem ao início do séc. XX, e dêem um salto rápido até ao outro lado, até 1895. Mais precisamente às 17 horas do dia 11 de Outubro, em Santiago do Cacém, Setúbal. A esta hora, chegava à então pequena vila do litoral alentejano o Panhard-Levassor, um engenho curioso adquirido em França por D. Jorge de Avillez, jovem aristocrata da região. Rejubilemos: Estamos neste momento a presenciar o primeiro registo da história automóvel em Portugal. Imaginem-se agora, quer no papel de um agricultor local, quer de um fidalgo, ou outra personagem que queiram vestir durante estes breves segundos de leitura, não interessa. Porque qualquer que fosse a sua classe social, a sua reacção a uma carruagem sem cavalos, à velocidade de quinze quilómetros por hora, coberta de fumo e com este cheiro ao combustor exótico recém-apelidado de gasolina, seriam o suficiente para uma de duas coisas: De o fascinar para a vida inteira, ou de lhe meter um pavor digno de recordar a inquisição. Qualquer que fosse o resultado, esta visão ficaria gravada na sua memória para sempre.

Avancemos agora seis anos, para 1902. Foi há precisamente 119 anos que se registou a primeira prova automobilística na Península Ibérica, no então chamado Rali Figueira da Foz-Lisboa. Em 27 de Outubro de 1902 partiam da cidade costeira um intrépido grupo de pioneiros decididos a difundir por Portugal algo que até então era um fenómeno que, como já percebemos, era completamente novo e exótico: o automóvel. Tal foi o sucesso desta aventura que no ano seguinte, em 1903, aproveitando este optimismo face ao novo meio de locomoção, forma-se o Real Automóvel Clube de Portugal, hoje conhecido como ACP, entidade que, passado mais de um século, dispensa apresentações. À data, o raid previa rumar inicialmente para Cascais, mas alterações de última hora desviaram-no para Lisboa, mantendo-se assim a prova até 2015, quando deixou de ser realizada.

Já pode respirar de alívio: estamos de volta a 2021. Após vários anos de interregno, o Museu do Caramulo e o clube Pre-War Racers Portugal, em parceria com o ACP Clássicos e o Clube Português de Automóveis Antigos, trazem de volta este passeio que celebra a era dourada do automobilismo, com a mesma premissa simples do original: 17 automóveis terão que percorrer 250 quilómetros de estradas nacionais e regionais, mantendo uma média mínima de 30 km/h. 

A equipa de reportagem, composta por mim e pelos repetentes Bruno Pereira e chauffeur de serviço, Pedro Cardoso, tinha uma ideia que se não era original, era pelo menos ambiciosa: Usarmos uma carrinha com portões laterais e traseiros para poder filmar e fotografar a caravana em andamento de todos os ângulos. No papel era uma ideia excelente, mas a prática teve uma vida curta. O nosso problema foi subestimar as dimensões e velocidade cruzeiro dos participantes, que em ambos casos seriam bem maiores do que o antecipado. Outro factor deveras importante, era o forte vento que tornava imprevisível o comportamento dos portões, que no melhor dos casos nos podiam causar ligeiros hematomas, e no pior, simplesmente nos cuspir da carrinha a alta velocidade. O hobbie de repórter é bem pago, mas ainda não inclui seguro de vida, portanto decidi mudar a abordagem para algo ligeiramente menos perigoso, fotografar directamente a bordo de um dos participantes. Acredito que a melhor forma de registar um evento, é, primeiro, sobrevivendo, e de seguida vivendo-o de perto, sendo participante e incluindo-me nas suas ocorrências. Seguindo esta doutrina, não tardei em trocar o arriscado banco lateral da Citroën SpaceTourer por um lugar equiparadamente inseguro nos bancos traseiros de um Abadal 25HP de 1914.

Este modelo, produzido em Espanha, pertence à colecção do Museu do Caramulo e é a máquina mais antiga em prova. Quando foi lançado, era capaz de atingir uma velocidade de 120km/h, e tem a particularidade de ser o único exemplar em condições de funcionamento no mundo, de que haja conhecimento. Apesar de possuir quatro pneumáticos e um volante, tal e qual como os seus descendentes modernos, estes automóveis comportam-se mais como locomotivas, e o Abadal não é excepção. O arranque e travagem são lentos, desajeitados, e requerem imenso planeamento, tal como a inércia tem um papel preponderante na sua condução. Os motores não lidam bem com trânsito lento, e por esta ordem de ideias, nem com semáforos encarnados ou sentidos de trânsito. Só existe uma regra neste jogo: O comboio não pode parar, independentemente se é fim da tarde, se é hora de ponta na entrada para Cascais, e se milhares de pessoas escolhem a mesma estrada que nós para regressar de um dia de sol na praia do Guincho.

Ao todo, 17 participantes comprometeram-se a chegar ao fim dos 250 km desta prova, por troços escolhidos pela organização com especial cuidado para garantir as melhores paisagens e distância dos grandes centros urbanos sempre que possível. Da Figueira da Foz, seguimos pela estrada Atlântica e Nacional 242, passando pelos destinos balneares da Marinha das Ondas, Praia do Pedrógão, São Pedro de Moel, e perdendo o fôlego nos miradouros da Nazaré ou da Foz do Arelho. Seguimos para sul depois de um belo almoço numa estância de golfe perto de Peniche, antes de arrancar em direcção ao Estoril para a última etapa da viagem, negociando os troços da Nacional 247, atravessando a Serra d’el Rey, e mantendo o tema costeiro bem presente com a passagem na praia de Santa Cruz, São Lourenço e Ericeira, finalmente virando a Este à passagem do Farol do Cabo raso, até finalmente entrar em Cascais. À diversidade das estradas, soma-se a panóplia de bólides participantes, que apesar do pequeno número, conseguiram criar uma amostra bastante representativa do estado da arte automóvel pré-1939.

Desde os luxuosos Bugatti 57 Stelvio de 1936, MG SA de 1937 ou Rolls Royce 20/25 Cabriolet de 1932, encontramos alguns deportivos tal como os MG Magna F, também de 1932, dirigido por Pedro Villas-Boas, ou o Riley Nine 2 Seat Sport de 1934. Claro está, não esquecendo os mais (para a época) populares e práticos Dodge Brothers Business Coupe de 1918 e Ford A de 1928. Apesar da idade dos participantes, quer das máquinas, quer condutores, é espantoso como todos cumpriram o acordo de cavalheiros de chegar aos jardins do Casino do Estoril antes das 18 horas. Como em tudo, a excepção confirma a regra, e desta vez foi o pequeno Fiat 525N do Museu do Caramulo, conduzido por Tiago Patrício Gouveia, a desistir pelo caminho devido a uma falha mecânica.

Fiz a maior parte do percurso a bordo do Abadal, e vários pormenores me chamaram à atenção: Primeiro, o nível de detalhe e minúcia com que todas as peças são desenhadas e trabalhadas. Afinal de contas, um automóvel deste período podia custar o equivalente a uma casa, estando por isso reservados a uma elite de pioneiros. Segundo, a forma como o condutor e amigo Ricardo Correia de Barros, manuseava todos os seus controlos em tempo real, como se de um maestro a dirigir uma orquestra se tratasse. Além do mais, fascinou-me a agilidade e normalidade com que controlava o trânsito do topo do seu assento, uma visão rara de automobilista que é ao mesmo tempo um sinaleiro, tal e qual como nos primórdios do trânsito motorizado. 

As reacções à nossa passagem, por parte de peões e tráfego podia ser polarizada: Por um lado, os pedestres mais curiosos apontavam, acenavam e fixam-nos o olhar com um sorriso rasgado. Afinal de contas, é provável que nunca tenham visto um automóvel desta idade fora de um filme. Por outro lado, os olhares de reprovação dos motoristas à chegada a Cascais, enquanto saltávamos o trânsito de uma forma a que alguns poderiam chamar no mínimo de anti-democrática. Não era com maldade, vos garanto. Após alguns quilómetros a acusar fadiga, parar o Abadal no trânsito era ditar o fim da nossa viagem.

Contra todas as minhas expectativas, chegámos aos jardins do Casino do Estoril, o maior casino da Europa, ainda com luz do dia, apenas uma hora depois do programado. Este local, em plena Riviera Portuguesa, é verdadeiramente emblemático e simbólico, com uma vista privilegiada sobre o Tejo. Este era um dos locais privilegiados dos boémios endinheirados no início do séc. XX, arriscando-me eu a dizer que muitos deles provavelmente se fariam chegar aos jogos num bólide semelhante aos do passeio.

Os modelos pré-guerra, produzidos até 1939, fazem parte de uma geração em que os automóveis e motos eram feitos sem limitações, com elevada elegância e exuberância, com atenção aos detalhes e materiais, o que lhes conferia uma presença que hoje raramente se encontra. É uma era especial que merece ser vista e celebrada. Esta prova é hoje mais importante do que nunca, pois apesar de haver cada vez mais eventos, provas e oportunidades para os proprietários de automóveis clássicos poderem participar e tirarem proveito dos seus veículos, a verdade é que quase nenhum deles é orientado ou pensado para poder receber este tipo de automóvel, o que faz com que eles desapareçam do olhar do público.

Longe de mim banalizar os restantes encontros de clássicos que costumo cobrir, mas desta vez emergiu-se em mim um sentimento diferente. Um sentido de missão diferente do habitual. Foi algures no percurso que me apercebi: Não estou a fotografar um passeio. Estou a registar os primórdios do automobilismo em Portugal e a prova automobilística mais antiga do país, e é algo que não me esquecerei tão cedo. Desta feita lanço um agradecimento muito especial ao Museu do Caramulo por mais este convite irrecusável. Espero contar-vos o próximo episódio desta aventura, pois o Figueira da Foz-Estoril estará de regresso em 2022 para celebrar o marco da sua 120º edição.

Fotografias: Joel Araújo.

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