Caramulo Motorfestival: A Montanha Mágica

Eventos 23 Out 2021

Caramulo Motorfestival: A Montanha Mágica

Por Joel Araújo

Após três anos consecutivos a tentar, levanto a bandeira branca. Baixo as armas e anuncio a minha derrota. É oficial: É impossível. Não é por falta de vontade ou de capacidade, mas não consigo fotografar no Caramulo Motorfestival. É bizarro, pois este evento é sem sombra de dúvidas o mais bonito, mais colorido e mais animado que temos no país. Na teoria e também na prática, é o evento perfeito para fotografar. O problema é que fotografar, para mim, requer uma solidão forçada, uma abstração dos estímulos, e um afunilamento da visão. Requer ir a um evento sem “bagagem”, requer estar por minha conta. Perdoem-me a introdução pseudo-filosófica. Vou dar-vos uma analogia simplista mas totalmente adequada: Qual seria a última coisa que gostariam de estar a fazer durante um casamento, noite de festa, ou concerto da vossa banda favorita? Não, a resposta certa não é “agachado a uma sanita”, porque isto pressupõe elevadas doses de divertimento prévio. A resposta certa é fotografar. Estar preso a uma câmara. Estar preso à ansiedade de capturar todos os momentos especiais para entregar ao “cliente”. Todos os carros, todos os pilotos, todas as actividades. Têm noção do que estão a pedir? Num outro evento qualquer, não haveria problema. Mas imaginem querer degustar de um bom almoço desapressado com os amigos convidados. Imaginem querer meter a conversa em dia com tantos outros no recinto, bisbilhotar a feira de automobilia, relaxar num relvado com vista para o vale ao som de ZZ Top, tentar organizar um pedido de casamento surpresa, levar uns miúdos no seu baptismo dos clássicos rampa acima, fazer um piquenique debaixo do coberto da escola primária, ter um jantar de gala e uma after-party. Experimentem querer fazer tudo isto enquanto precisam de trabalhar. É-me impossível fotografar no Caramulo.

Uma semana antes do evento, fui convidado a deslocar-me à serra para experienciar o que é passar férias no topo da montanha mágica. Os meus planos seriam relaxar, apanhar sol, procurar as praias fluviais mais interessantes e ganhar algum bronze. Nas horas vagas, por cortesia e em troca da hospitalidade do Salvador, organizador do evento, eu fotografaria os preparativos do festival e ajudaria nas montagens, caso fosse preciso. Óbvio que a azáfama e ritmo frenético dos bastidores do Motorfestival me absorveu completamente, e as férias acabaram inevitavelmente por se transformarem numa espécie de voluntariado muito especial. Tive o privilégio de testemunhar de perto a forma como uma família inteira respira e bebe o Caramulo. Não apenas o ar e água, que sabemos serem de uma pureza inquestionável. Mas sim conhecer a nascente desta essência tão apaixonante pelos automóveis, e perceber que o seu cabeça de cartaz, o Motorfestival, é tão informal e familiar, não por design, mas por mero reflexo da estrutura organizativa. Este fenómeno nacional não é organizado por uma empresa profissional de eventos. No papel, não tem gestores de marketing, não tem gestores de operações logísticas, não tem gestores de catering e relações públicas. No papel. Na realidade, é um grupo de pessoas que se junta para organizar uma festa numa vila, quase como acontece nas festas religiosas do interior rural de Portugal. Só que por acaso esta festa é apenas o maior festival motorizado do país, com o benefício de não ser necessário peditório na paróquia. A tipografia do museu, área não acessível ao público, foi o grande centro de operações deste espetáculo, e onde passei praticamente toda a semana. O que outrora serviu como gráfica de impressão de artigos tão variados como listas telefónicas, jornais locais, panfletos, material para a estância e anúncios dos filmes que passavam no cinema do Caramulo, via-se agora convertida numa redação moderna, recheada de computadores e material informático digital. Mas estando nós no Caramulo, basta desviar o olhar para nos apercebermos que tudo aqui tem história. Ali mesmo ao lado, a Heidelberg de 1950, impressora de grande formato, traça um bonito paralelismo que se alastra por toda a vila. A modernidade e a história caminham de mãos dadas neste lugar. Por momentos senti-me num filme de espionagem da guerra fria, a entrar numa cave cheia de “hackers” mergulhados nos monitores, ao ritmo frenético das teclas de computador, e ao som ensurdecedor do tocar incessante dos telefones e telemóveis. 

Depois deste prólogo, voltava ao Caramulo uma semana depois, para o grande fim de semana do Motorfestival, desta vez com mais 5 amigos. Já é tradição: Partida do Porto na 6ª ao fim da tarde com paragem obrigatória em Aveiro para beber o primeiro gin do fim-de-semana na Praça do Peixe, acompanhado logo de seguida por uma francesinha junto ao canal de S. Roque. Tratamo-nos bem. Afinal de contas a viagem até Carvalhal da Mulher ainda é longa, e uma vez lá, a única coisa que há para petiscar é vinho do Porto, que o proprietário do AirBnB nos cede alegremente pelo terceiro ano consecutivo.

Sábado foi um dia muito bom. O Motorfestival este ano celebra os 50 anos do pequeno utilitário Fiat 127, automóvel historicamente muito relevante na Europa, e tão querido da cultura popular portuguesa. Celebra-se também o 60º aniversário do Jaguar E-Type, a máquina mais “sexy” do mundo, e ainda os 135 anos do primeiro automóvel, o Benz Dreirad de 1886, também ele presente nas festividades, na forma de uma réplica inglesa da John Bentley & Sons Ltd, propriedade do museu. Este ano, para além de visitante, tive a oportunidade de subir a rampa como navegador num Bugatti Type 57 Stelvio Gangloff, aos comandos do Salvador Patrício Gouveia, e mais tarde no meu Corolla KE20, liderando a caravana do Driver’s Cult na iniciativa solidária “The Good Drive”, levando duas crianças rampa acima, difundindo a cultura dos automóveis clássicos pelas novas gerações. Tudo isto foi bonito e entusiasmante. Mas facilmente eclipsado pelo derradeiro acontecimento do dia: Um pedido de casamento. Não o meu, porque ainda não encontrei quem quisesse obter benefícios fiscais comigo, mas sim do Sérgio. O Sérgio faz parte do meu reservado núcleo de melhores amigos, e já me acompanha ao Motorfestival há quatro anos consecutivos. Ainda assim, fiquei surpreendido quando ele sugeriu fazer o pedido durante o evento. Imagino que organizar um pedido de casamento nunca seja tarefa fácil. Mais difícil será fazê-lo durante um evento com milhares de pessoas e com uma prova desportiva a decorrer em simultâneo. O plano em teoria era simples: Em segredo, o nosso grupo de amigos comprou uma das subidas de rampa da Race for Good, associação solidária promovida por André Villas-Boas, a bordo de um Lamborghini Miura. A Sarita (noiva) é portista ferrenha, e por coincidência, fã da marca do touro de Sant’Agata Bolognese. Melhor combinação era impossível.

Lá em cima estaria o Sérgio, de anel na mão, e com umas garrafas de Murganheira prontas a servir. A descida seria feita a bordo do Bugatti 57, com direito a sessão de fotos e anúncio do speaker de serviço, Adelino Dinis, para as milhares de pessoas que visitavam o evento. Na linha de partida, o João, Miguel e Francisco estariam prontos para fazer uma vídeo chamada em grupo com os vários familiares que aguardavam ansiosamente em suas casas pelo desfecho. Na prática, tudo complicou: Para quem esteve no Caramulo durante este fim-de-semana deve-se ter apercebido que era virtualmente impossível fazer ou receber chamadas, as mensagens de texto não eram enviadas, e nem vamos falar do acesso à internet, mais escasso que o meu cabelo. A solução para este problema foi o grupo dividir-se em dois. Os rapazes afastariam a noiva para longe da linha da meta, enquanto eu e o Salvador tratávamos de todos os preparativos. Tenho um agradecimento muito especial a fazer a este amigo. É inacreditável como alguém que está aos comandos de um evento de dezenas de milhares de pessoas, o primeiro depois de um ano de interregno, e o primeiro grande festival automóvel depois do início da pandemia, pára tudo para ajudar um amigo a organizar esta disrupção. É absolutamente inacreditável, e imensamente inspirador para mim. O pedido seria no topo da rampa, num miradouro intitulado de “Cabeço da Neve”. Para dificultar a logística, o acesso só é possível através de um automóvel, e a única forma de conduzir na rampa durante este fim de semana é se for numa viatura inscrita nas competições de chronomasters ou speedmasters, ou no Alfa Romeo Stelvio, o automóvel zero, conduzido por Ricardo Megre, filho de José Megre, um dos portugueses pioneiros a participar no rali Paris-Dakar em 1982 a bordo de um UMM. O Sérgio, assim como as garrafas de champanhe subiriam no Alfa. Eu subiria a rampa com o Salvador no Bugatti e a Sarita subiria com o André no Lamborghini. Com os transportes assegurados, era preciso assegurar o timing perfeito. Os veículos não podiam partir com demasiada distância entre eles, e ninguém podia ficar lá em cima durante muito tempo porque o espaço era limitado e as máquinas tinham que circular. Para agravar a situação, a prova estava cerca de 1h45 atrasada. Se isto corresse mal, não me ia perdoar. No topo da rampa estavam vários pilotos e familiares da organização. Todos eles foram informados do que se iria passar, e era notório o nervoso miudinho em todos os rostos. Afinal de contas, isto era uma ocorrência inédita num Motorfestival. Quando a Sarita chegou, as conversas, a azáfama, os motores…A terra parou.

“Os teus amigos têm uma surpresa para ti. Boa sorte”. Disse André Villas-Boas à Sarita, mesmo antes de sair do automóvel.

O Sérgio aparece de súbito no meio da multidão, coloca-se de joelhos, e sem palavras, deu-se um dos momentos mais bonitos a que já presenciei. O nervosismo deu lugar a um estado de euforia, e só passados cinco flutes consecutivos de Murganheira consegui abrandar o meu ritmo cardíaco. O final triunfante desta história deu-se com o par no banco traseiro de um clássico descapotável de 1936, descendo a rampa ao som dos aplausos dos milhares de espectadores, como se da família real se tratasse. O encore desta aventura foi passada no sopé da rampa, com vista para o vale entre o Caramulo e a Serra da Estrela, num dos espaços mais geniais alguma vez concebidos para o Motorfestival: A “Bikersville”. Ao som da Sweet Emotion dos Aerosmith, com um Martin Miller’s na mão e sorrisos rasgados na cara de todos. Missão cumprida. O fim do dia acabou com o afamado jantar no Claustro. Uma oportunidade para finalmente relaxar depois de um dia de intenso calor e emoções fortes. Domingo foi mais do mesmo, ainda que ligeiramente mais debilitado fisicamente. Tive oportunidade de subir a rampa no desfile dos veículos pré-guerra, anunciando o grande rali Figueira-Estoril que se avizinha, o rali mais antigo da península ibérica, que também tive o gosto de acompanhar como fotógrafo nos passados dias 8 e 9 de Outubro.

Foi o início de um novo ciclo. Voltar aos festivais e observar como na sua generalidade, o público respeitou o uso de máscara, dá-me esperança que estes grandes eventos sejam viáveis e possam coexistir nesta fase de transição e anunciar o início da era pós-pandémica. 

Contudo, como em qualquer rescaldo de um grande concerto, de um jogo de futebol, de uma estreia de cinema, ou qualquer outro acontecimento consensualmente emocionante, as opiniões serão divididas. Vai haver sempre quem adorou, quem gostou mais do anterior, e quem gostou menos. Numa das conversas com amigos sobre o festival, um deles partilhou uma reflexão que acho que resume muito bem o que penso.

“Quem não entra no espírito, mais vale não ir.” 

Não haja dúvidas que este é um evento caótico. Não porque existe falta de planeamento, não porque há descuido da organização, não porque há falta de brio. Esta orgânica é reflexo directo de uma organização que é para todos os efeitos muito familiar, informal, fundada acima de tudo numa grande paixão e tradição de bem receber, ano após ano, dezenas de milhares de visitantes no topo da serra. Vão sempre haver filas para comer, nem toda a gente vai ficar estacionado no parque que quer, vai haver a confusão da multidão, vão haver atrasos na rampa, a vila do Caramulo vai ser sempre pequena para a quantidade de visitantes, vai sempre haver alguém insatisfeito, com mais ou menos razão. É um evento conscientemente imperfeito, aberto ao público com entrada livre e gratuita. E uma coisa posso garantir: Quem for para se divertir, não se diverte assim em mais lado nenhum. Até para o ano.

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