Clássicos • 19 Set 2019
“Os Garagistas” foi a forma mais elegante que Enzo Ferrari encontrou para insultar os então pequenos empreendedores britânicos Cooper e Lotus, que com uma fracção dos recursos, estariam a roubar títulos ao reputado industrialista de Maranello, durante a adolescência da Formula 1 nos anos 60.
Esta série é dedicada a todos eles, aos Garagistas. Aos que vivem numa dimensão onde os sonhos não obedecem a recursos. O único local terrestre onde um mês pode durar cinco anos. Uma caverna que prova que o mamífero bípede moderno também possui capacidade de hibernar por longos períodos de tempo. Lar dos alquimistas contemporâneos, onde todos os fins-de-semana (ou noites prolongadas) ferrugem é transformada em ouro.
No primeiro capítulo visito um lugar onde, para além de água engarrafada, outras coisas boas nascem: O Caramulo. Recentemente fui convidado, como tem vindo a ser habitual, a fotografar a inauguração da mais recente exposição no conhecido museu da região, neste caso da celebração da Renault: 120 anos de estrada.
O processo não tem muito que enganar: Partir bem cedo de Braga, fazer o check-in no Museu; Fazer um reconhecimento rápido da exposição; Criar uma lista de “a fazeres” e começar a fotografar. Este processo dura geralmente até às 19h, com apenas uma pequena pausa para almoço num restaurante das redondezas. Desta vez não seria diferente, ou quase. Não fosse uma pequeno detalhe que viria a despoletar este texto que vos escrevo: Depois de um almoço agradavelmente diferente a convite dos anfitriões Salvador e Tiago Patrício Gouveia e restantes familiares, fui levado a conhecer algo que, depois de tantas visitas ao Caramulo, desconhecia completamente.
Não é hábito levar a Fujifilm a almoçar, mas arrepender-me-ia para sempre se não o tivesse feito neste dia. As oficinas do Museu existem há mais de 60 anos, surgindo da necessidade que João de Lacerda, ávido coleccionador, amante dos automóveis e fundador do Museu tinha de ter um espaço onde pudesse manter e reparar o seu aglomerado de viaturas pessoais.
Assumindo diferentes formatos ao longo das décadas, hoje em dia as oficinas do Caramulo servem para lá das necessidades internas de preservação dos veículos expostos no Museu. Efectuam também restauros e manutenção de rotina para clientes nacionais e internacionais. Não só de clássicos de seis dígitos, de motociclos e veículos militares, mas também dos mais populares bólides das décadas passadas.
Todo este espaço tem uma patine única. Uma que não foi artificialmente criada com artigos vintage pós-adquiridos a preços inflacionados. A iluminação não é perfeita, a tecnologia não é de ponta, as paredes e chão estão repletos de marcas do tempo. Mais curioso que tudo, é que esta oficina não cheira a óleo, a ferodo ou a gasolina. Cheira a montanha, e aos ares puros que em tempos serviram de cura a quem buscava refúgio da tuberculose. Numa era em que, se não há fotos, não existe, é fácil subestimar a qualidade e prestígio destas quatro paredes.
Entre as várias peças que, depois de servirem o seu propósito prático, servem agora de decoração, entre fotos antigas, volantes e peças com várias décadas, encontrava-se a obra prima acidental que se destaca das outras: Um painel enorme com o historial de automóveis adquiridos por João de Lacerda, contendo dezenas de exemplares, desde a década de 50 até aos anos 80, “e falta aqui muita coisa”, remata o Tiago. De modelos populares como o Fiat 600 ou Austin Cooper até verdadeiras lendas sobre rodas como Mercedes Benz 300 SL, Ferrari 166 MM ou Maserati 250F, não esquecendo verdadeiras relíquias da história do automóvel como um De Dion Bouton ou Peugeot 5hp.
Ao contrário do que aconteceria numa garagem genérica, não há dois dias iguais na oficina do Caramulo. Neste Sábado coberto de nevoeiro, uma carrinha estacionada à porta despertou-me a atenção, não pelo modelo, mas pelo que transportava. Nos dias anteriores a oficina teria recebido o que se pode chamar de paciente grave. Daqueles que foram a todos os médicos, e nenhum lhe encontrou cura. O paciente em questão era um Peugeot de 1927 que ninguém deste lado do planeta conseguia meter a trabalhar. Foi preciso o próprio Antero Paiva, antigo mecânico ao serviço de João de Lacerda, fazer uma pausa da reforma para, apenas numas horas, conseguir fazer o que nenhum equipamento, recursos ou condições conseguiram: trazer o pequeno motor de volta à vida. São verdadeiras fábulas como estas que continuam a trazer veículos de todo o mundo a estas oficinas bem guardadas no coração da Serra do Caramulo.
Quando voltei a casa e editava as fotos principais da exposição Renault, não conseguia parar de pensar nas fotos informais que tinha tirado nas oficinas. Curiosamente, e sem que ninguém do Museu saiba, acabei por gostar bem mais destas últimas. “Tenho que fazer alguma coisa com isto”, pensei. E assim surgem os Garagistas, pessoas comuns que contam histórias sobre lugares incomuns.
Ah vários anos seguidos que lá vou ao motorfestival caramuoo, desconhecia essas oficinas, sem dúvida um passado presente.. parabéns.