Clássicos • 25 Abr 2017
O Porsche 911 Carrera 4 “964” é música para os nossos ouvidos
Mesmo quando se dá bastantes elogios a algo, há sempre a tendência de não prestar atenção à quantidade de trabalho, esforço e experiência que é necessária para criar uma obra-prima, tanto no mundo da arte, como no mundo automóvel e em todos os restantes. Todos percebemos que não é fácil, no entanto é fácil não ver a longa, e por vezes tortuosa jornada, não ter consciência das oportunidades perdidas e imprevistos ao longo do caminho. Um bom exemplo é este Porsche 911. A sua existência deve-se ao acidente de um Porsche 906, ao trabalho de duas gerações que preservam e optimizam carros de corrida vintage e à missão de um engenheiro de construir o melhor automóvel para qualquer condutor.
Sébastien Crubilé é o director da Crubilé Sport, uma conhecida empresa no ramo Restomod localizada a uma hora de Paris, perto de Rambouillet, que restaura, altera e aperfeiçoa qualquer coisa ligada com a Porsche. E qualquer coisa ligada com a marca alemã não significa que trabalham só com modelos 911 e com alguns Cayenne. A Crubilé Sport tem uma perícia única no que diz respeito à era dourada da marca no desporto motorizado, trabalhando com modelos 906, 910, 907, 917, 936, os turbocharged 934 e 935, e ainda o extremamente raro 2.1 RSR Turbo.
Assim sendo, não deve ser uma surpresa que as origens de Sébastien estão ligadas ao mundo automóvel, e isso é só a passar pela superfície. Crubilé saiu da maternidade com os seus pais num 911 2.7L. A sua infância foi passada na oficina do seu pai, todos os dias no fim da escola, rodeado de carros de corrida, e passou muitos fins-de-semana a correr com karts. Mesmo assim, o pai de Sébastien não o encorajou a ficar com o negócio da família.
Ele queria que Sébastien tivesse uma vida mais confortável, longe das longas horas de trabalho e desafios físicos do trabalho de mecânico. Crubilé estudou engenharia, enquanto trabalhava para vários constructores e um estúdio de design industrial, focado em modelos 3D e renderização. Durante os anos 2000, Sébastien e o seu pai começaram a restaurar um 906 como uma forma de passarem mais tempo juntos, e dentro de poucos meses o automóvel estava a correr num circuito, até que um dia se incendiou enquanto o pai de Sébastien o estava a conduzir.
O condutor mal escapou com vida, e para Sébastien este momento foi um ponto de viragem. Não só quase perdeu o seu pai, como também todo o conhecimento que ele tinha acerca de alguns dos mais celebrados carros de corrida do mundo. Com esta nova visão, Sébastien abandonou o seu trabalho e abriu a Crubilé Sport, determinado a aprender tudo aquilo que o seu pai tem para ensinar. Os conhecimentos de engenharia e design de Sébastien foram inicialmente postos ao serviço de optimizar e criar novas partes para os carros de corrida ao seu cuidado e do seu pai.
À medida que expandia o negócio de restauro, Sébastien também corria em provas, participando nas 24 Horas de Le Mans em 2013, e vencendo nas 24 Horas do Dubai Cup Class ao volante de um 997 GT3 RSR na sua estreia, nesse mesmo ano. Nos circuitos clássicos, os Crubilés dominaram a Le Mans Classic com vitórias num 935 e 936, de 2004-2010. Nos dias de hoje, a Crubilé Sport é vista como uma das únicas oficinas no mundo que tem a capacidade de conquistar vitórias para coleccionadores que anseiam ter lugares de honra em competições como Goodwood, Le Mans Classic, ou em Laguna Seca durante a Monterey Car Week.
Há alguns anos, Sébastien questionou se seria possível canalizar toda a sua experiência de corrida para a construção na derradeira interpretação dos modelos de estrada Porsche da década de 70. O que pode ver de seguida é o segundo exemplar completo resultado desta busca, e o primeiro coupé. A comparação com a Singer é inevitável, mas apesar dos 911 da Singer serem incríveis e muitas vezes comparados a peças de joalharia, o restomod da Crubilé é mais discreto. Pode dizer-se que é um haute-couture hot rod, elegante, mas bastante capaz de um comportamento que contradiz a sua aparência. Sébastien tem um grande respeito pelo trabalho de Rob Dickinson, mas queria fazer algo diferente. Não existe apenas uma forma de modificar os icónicos 911. Os anos passados e a tecnologia implantada neste projecto permite à Crubilé Sport oferecer um nível quase infinito de opções de customização para os seus clientes e, virtualmente, todas as peças deste automóvel foram personalizadas. Actualmente, tudo o que vê neste automóvel pode ser reproduzido e aplicado em projectos futuros.
Não é necessário dizer que um 911 personalizado e todo em fibra de carbono não é acessível para qualquer pessoa, mas, sem dúvida. vale o seu preço. O nível de desenvolvimento nestes automóveis ultrapassa quaisquer espectativas. Baseado num 964, a criação final só mantém o chassis e bloco do motor devido aos números de série, enquanto tudo o resto é redesenhado. Como designer, o que Sébastien mais gosta nos primeiros modelos do 911 é a simples linha que vai desde os faróis dianteiros aos traseiros sem ser interrompida. Pela altura em que a geração 964 foi construída, esta linha teve de ser abandonada para dar espaço a para-lamas mais largos, para assim dar caberem jantes e pneus maiores. Sébastien estava determinado a restaurá-lo, mas dado que as jantes necessárias para suportar a potência do automóvel eram ainda maiores que as originais do 964, o engenheiro trabalhou com o famoso designer Hermidas Atabeyki para alargar o todo o automóvel dois centímetros de cada lado, sem perturbar a forma do modelo.
Ao fazer isto, os mecanismos das janelas tiveram de ser redesenhados, para acomodar a largura adicional. Salvar peso era supremo, e apesar de ter sistema de ar condicionado, bem como outros confortos modernos, o automóvel pesa apenas 1200 kg, graças à fibra de carbona aplicada. As portas, para-lamas, capot, para-choques e a tampa traseira foram feitas em carbono, tornando este exemplar 175 kg mais leve que um 964.
Sébastien queria também desfazer-se dos frisos de chuva presentes no tejadilho de Porsches refrigerados a ar, como Alois Ruf fez no lendário CTR. Mas esses frisos são, na verdade, as três folhas metálicas que mantêm a estrutura do tejadilho, e eliminá-las enfraquece o automóvel. Em vez de comprometer isso, o responsável pela metalurgia de Sébastien teve de passar dias a reforçar essa linha, para assim garantir que a rigidez era mantida.
Outro detalhe fascinante está em algo tão simples como na roda suplente na bagageira. Enquanto estudava os dados do teste de colisão do 964, Sébastien reparou que a roda absorvia alguma da força de impacto durante uma colisão frontal, contribuindo para a segurança geral do automóvel. No design da Singer, também baseado num 964, foi decidido retirar a roda suplente para criar espaço para radiadores de óleo maiores, um risco que Sébastien não estava disposto a correr. Foi necessário personalizar o espaço para permitir que o pneu suplente continuasse a poder ser utilizado. É sem dúvida um espaço apertado, e o carbono é demasiado belo para ser coberto, mas o objetivo é que a funcionalidade e a segurança sejam mantidas.
Sébastien realça ainda que não há parafusos visíveis no automóvel, que necessitou, entre outras coisas, do redesign dos espaços para os faróis dianteiros e traseiros, e produzi-los em alumínio.
O motor é de 4.2 litros e seis cilindros em linha, capaz de produzir 420cv e 500Nm de binário às 7500 rotações por minuto. Tudo foi optimizado, através de bielas, cames e cambota, pistões e cabeças de cilindro. Às 5000 rotações, o motor tem mais potência e binário que o 997 GT3 RSR que Sébastien conduziu em 2013. A caixa de ar é inspirada pela que podemos encontrar num icónico 2.7L, mas mais uma vez, desenvolvida na oficina, e completamente modificada para acrescentar 30cv à potência. Sébastien não sabe confirmar a velocidade máxima deste projecto, visto que limitou o velocímetro do automóvel aos 300 km/h num dos seus mais recentes testes, e a aplicação que usa como alternativa não regista velocidades acima dos 230 km/h. Não será necessário dizer que é muito mais rápido do que o necessário.
O interior tem detalhes requintados, mas não está preenchido em demasia, e também não é desconfortável, devido aos bancos aquecidos e ventilados eléctricos da Recaro, bem como à ventilação escondida para destacar o simples e mais longo painel de instrumentos, feito por um artista em Paris. Os botões são iguais aos da Porsche fornecidos pela VDO, nos anos 70, com electrónicas diferentes para o 964. O som automotivo é da Focal, e substitui as linhas em carbono das colunas por linho, o que providencia um som mais voluptuoso dentro do automóvel. Para evitar confusões de fios, um íman Bluetooth está escondido no painel.
Apesar das suas conquistas estéticas, o 911 modificado por Sébastien é determinado pelo seu propósito como carro de corrida, e foi sujeito a 20.000 km de testes, um deles sendo atingir o seu limite num arranque a frio. Nas suas próprias palavras, o automóvel tinha de ser belo, mas tinha de trabalhar, e o condutor tinha de se sentir seguro. A paixão e determinação de Sébastien levaram-no a este projecto incrível, que hoje pode reproduzir.
Já começou a trabalhar na sua própria versão Safari, tirando inspiração do Expresso do Oriente e dos Land Rover vintage, e promete tornar este num automóvel capaz de levar os condutores até ao fim do mundo, se eles assim o desejarem. Também lhe foi proposto trabalhar num restomod eléctrico, bem como explorar a possibilidade de converter automóveis vintage para serem compatíveis com combustíveis bio. Sébastien está longe de ser a primeira pessoa a trabalhar com modelos 911 antigos, mas todos devem respeito a pessoas como o Sébastien por criarem algo com tanto cuidado e atenção. Ele dedicou a sua vida a elevar o valor de modelos vintage através de restauros, manutenção e modificação, e o resultado de todo esse trabalho e esforço é uma máquina a que se irão juntar mais como ela. O conceito de automóvel do futuro está cada vez mais próximo de ser uma recriação de uma versão do passado, e se o trabalho de Crubilé é algo por onde nos podemos guiar, as expectativas vão ser bastante altas.
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