Clássicos • 06 Mai 2023
Conheci o João Hortas em 1971, numa das reportagens de ralis em que acompanhei a equipa do RCP. Ele não trabalhava para a empresa, mas colaborava com a equipa de reportagem porque – tanto quanto julgo saber, pois eu só tinha 10 anos de idade – seria amigo dos irmãos Videira.
Em abono da verdade, seria amigo de muita gente, com o seu feitio afável, excelente contador de histórias e postura nobre. Havia quem não gostasse do estilo, mas eu adorava. Possivelmente terá sido o meu primeiro herói, ouvindo e observando tudo o que ele fazia, embora por força da minha idade, ele me desse uma atenção muito relativa.
Recordo-me de numa viagem a caminho do Rali da Montanha, ele ter insistido para parar junto a um acidente que acabara de ocorrer: um Volvo PV444 despistara-se para evitar uma colisão frontal com um carro que se atirou para a sua frente e foi bater contra uma árvore de grande porte. Por qualquer razão que não me recordo, gostava de ver acidentes de viação. De regresso ao carro recordou diversos acidentes que tinha vivido ao longo da sua animada vida, incluindo um em que retirara José Lampreia de um Mercedes 300 SL em chamas.
Um dia, num jantar, abriu um pouco o livro da sua vida: nascera rico, vivera numa casa enorme com diversas empregadas e parecia ter uma vida promissora sem muitas nuvens no horizonte.
Um dia, o pai adquiriu uma casa nova e no dia da estreia, foi à varanda e o corrimão cedeu, matando o senhor. João Hortas era ainda novo, mas processou o empreiteiro e após anos de luta nos tribunais acabaria por ser indemnizado em 1 milhão de escudos, uma fortuna para a época. Chegou a casa com a mala cheia de dinheiro que despejou em cima da cama para se deitar em cima dos molhos de notas, a chorar, pela primeira vez desde a morte do seu pai.
Mas a vida nunca mais foi a mesma. Se manteve a postura nobre, os meios já não eram os mesmos. Pelo que percebi tinha uma grande paixão pelos desportos motorizados, sendo frequentador assíduo dos ralis e provas de velocidade nacionais, assim como da motonáutica e da Tauromaquia. Em todos os lugares conhecia tudo e todos, mexendo-se com surpreendente facilidade. E conhecia todos os bons restaurantes. A postura ajudava. Um dia, lembro-me que ele queria ir a uma determinada prova e não tinha acreditação.
O meu tio perguntou-lhe como iria fazer:
– Não há problema. Devo ter uma braçadeira parecida lá em casa e depois é tudo uma questão de postura. Se formos determinados ninguém irá pensar que estamos a aldrabar e nunca nos mandam parar.
Era de tal modo verdade que um dia, a caminho do norte com a equipa do RCP, possivelmente num rali TAP, ficaram encravados no trânsito na ponte à entrada de Coimbra. Com horário para cumprir e sem possibilidade de passar, os repórteres da rádio começavam a ficar preocupados. Foi então que o João disse que ia resolver o caso, saindo do carro e dirigindo-se ao comandante da patrulha da PVT que geria (mal) o caos rodoviário.
Com o seu ar altivo, ordenou ao polícia que se pusesse em sentido enquanto lhe dava as instruções para abrir caminho ao carro do RCP. O polícia não teve coragem de questionar quem seria aquele homem que tão altivamente lhe dava ordens e deu instruções aos seus homens para fazer o que João Hortas ordenava.
No final obrigou o polícia a fazer continência, pediu-lhe a identificação afirmando que ia pensar no que fazer devido a tudo o que ali vira, dirigindo-se para o carro – que ultrapassou todos os outros sob a orientação dos guardas da PVT, podendo assim prosseguir viagem, com todos cheios de vontade de rir, obviamente sem o poderem fazer.
Na época em que o conheci, João Hortas vivia com uma senhora francesa que tinha um dos primeiros Citroën Dyane que houve em Portugal. Para facilitar o relacionamento com a senhora, mandou instalar uma buzina do lado direito, para ela poder participar na condução sem se queixar e sem sugerir que o condutor estava a exagerar.
Em 1972, o piloto e jornalista Francisco Santos editava um anuário chamado “Motores 72” onde surge uma foto de Hortas junto a César Torres, referindo na legenda “O Impagável João Hortas”. Talvez a definição mais correcta para o personagem.
Tinha um humor desconcertante. Um dia, a propósito da invenção da roda, pôs-se a discorrer sobre a ideia de que, antes da existência da roda, se usariam quadrados para o mesmo efeito. Isto até que um génio qualquer terá inventado o triângulo, um grande avanço pois sempre daria menos um saltinho em cada volta. Sempre sem perder o ar mais sério do mundo, passou em seguida a dissertar longamente sobre a possibilidade de ir ao registo de patentes averbar a invenção roda em seu nome. Talvez vestindo-se com uma pele de tigre, para dar um ar mais convincente à pretensão.
Perdi-lhe o contacto com o 25 de Abril. Soube depois que colaborou com César Torres na organização do rali de Portugal, mas por razões que desconheço essa colaboração terminaria ao fim de alguns anos.
Reencontrei-o quando fui trabalhar para a Rádio Comercial em 1989. O meu tio Armando, que desempenhava o papel de “Senhor Messias”, fazia na época o programa “Diário Rural”. Julgo que terá sabido da posição difícil do João Hortas e foi busca-lo para assistente do programa. No entanto nunca me referiu nada. Ou melhor, disse que o João tivera sempre uma vida de nobre, mas que agora, já na casa dos sessenta, faltavam-lhe os meios para manter o estilo e a vida que sempre vivera.
Mas a postura altiva e o peculiar humor eram os mesmos. Tal como a vontade de partilhar histórias. E nessa altura encontrou na minha pessoa um interlocutor interessado nas suas dissertações sobre automóveis e sobre a sua peculiar e bem vivida existência.
Um dia falávamos de estilo de vida e elegância. Como um exemplo de ambos, referiu-me a história de um tio (ou de um amigo do seu pai – já não me recordo bem) que possuía um monte no Alentejo que era atravessado pela linha de caminho-de-ferro. Mas por azar, não existia qualquer estação nas proximidades. Quando ia da capital para o monte, o dito senhor combinava com o cocheiro para o ir esperar perto da linha, no local onde esta atravessava a propriedade. Quando o combóio saído do Barreiro chegava ao local, o senhor vestia as luvas, pegava na mala, levantava-se e puxava o sinal de alarme, detendo o comboio bruscamente… perto do landau que o esperava.
Mas, antes de sair, procurava o revisor, denunciando-se como o autor da paragem forçada e pedindo para pagar a multa prevista por ter accionado o alarme sem ser numa situação de comprovada emergência. Depois despedia-se com elegância do revisor, tirando o chapéu e descia da carruagem para cumprir a parte final da viagem já na sua propriedade.
Embora fascinantes, algumas destas histórias pareciam-me exageradas, como uma que me contou com grande pormenor, de ir passar uns dias a casa de uma amiga a Madrid. E essa amiga chamava-se nada menos que Rita Hayworth! Ou de ir aos 1000 km de Nürburgring com o seu amigo Alfonso Cabeza de Vaca y Leighton, 11º Marquês de Portago e de ter ensaiado o seu Ferrari no Nordschleife. Verdade? Mentira? Nunca o saberei. Mas contava sempre as suas histórias convicto e pleno de detalhes.
A amizade com Rita Hayworth foi-me confirmada mais tarde por um amigo comum que o conhecera bem. Histórias mais detalhadas surgem no livro de memórias de Pedro Bandeira Freire (Entrefitas e Entretelas, de 2007) com um capítulo dedicado ao seu amigo João Hortas. Mas infelizmente ainda não consegui encontrar um exemplar da obra, que se encontra esgotada no editor.
Fazendo parte de uma geração que tinha poucos cuidados com a saúde, comia por prazer, fumava muito e bebia o que lhe apetecia. Julgo que já teria alguns problemas de saúde quando o reencontrei.
Ainda assim contava-me orgulhoso que bebia uma garrafa de gin por dia “pois era a única coisa boa para matar a sede” e dormia sempre em cima dos lençóis, com uma ventoinha no tecto para o ajudar a arrefecer.
Sabendo que eu gostava de viajar pelo país, na última vez que o vi ofereceu-me uma colecção de antigos mapas de Portugal que ele entendeu que ficariam bem nas minhas mãos.
Pouco depois teria um enfarte que o deixaria imobilizado, morrendo alguns meses mais tarde.
Mas nunca mais o esqueci. Estas linhas pretendem ser uma pequena homenagem ao “Impagável” João Hortas, o homem das corridas que todos conheciam e cujas histórias tanto me fascinavam.