Napier-Railton Special: Expoente Steampunk

Clássicos 27 Mai 2020

Napier-Railton Special: Expoente Steampunk

Por José Brito

O Goodwood Festival of Speed tornou-se num ícone da cultura automóvel com uma preponderância cada vez maior ao nível de reputação, representando, a título pessoal, o futuro dos salões automóvel. A panóplia de apresentações de novos modelos e desfile de ícones de outras eras tornam o evento em Goodwood House num espectáculo avassalador para quem nutre apreço pelo que o automóvel representa a título passado, presente e futuro. Um espaço onde a agregação de automóveis capazes de cativar toda uma multidão parece perder o valor, tal a frequência. As faces voltam-se, os maxilares abrem-se, mas existem sempre automóveis, de entre todos esses que nos deixam estupefactos, que têm uma certa mística em si.

Num ocasional deambulo pelo arquivo das subidas cronometradas do festival, a atenção volta-se para um veículo que parece, por qualquer ângulo ou perspectiva, digno de uma aura steampunk. O género, em voga no final dos anos 80 e início dos anos 90, trata da conjectura de paradigmas tecnológicos modernos com implementação anterior ao seu período real, como computadores de madeira ou aviões movidos a vapor, com abundância pela utilização de cobre e bronze, um cenário irreprovável para o Napier-Railton Special.


Após as comunicações e engenharia quebrarem praticamente todas as barreiras da natureza, ficamos retidos ao desafio das nossas próprias capacidades. Na década de 30 não haveria local mais impressionante para o fazer do que o Circuito de Brooklands em Surrey, Inglaterra, um dos motivadores para a génese de automóveis como o Special, onde a pretensão por recordes de velocidade era a premissa totalitária.

Desenvolvimento e Alta Cilindrada

Construído entre 1932 e 1933 pela mente do piloto de aviões e comerciante de peles John Cobb, entusiasta automóvel e com uma rica história em Brooklands, pelo designer Gurney Nutting e pela Thomson & Taylor, especialistas em motores de grande cilindrada há época, a premissa de concepção residia na ideia de providenciar Cobb com um automóvel capaz de quebrar recordes de velocidade e suportar as duras provas no traçado de Brooklands, o primeiro originalmente construído com o propósito de competição automóvel através da adaptação de um aeródromo sem utilização, detentor de um asfalto bastante irregular.


A experiência de competição de Cobb aos comandos de um Fiat 10-Litre e de um Delage, entre outros automóveis de menor alcance vitorioso, terá sido crucial para o desenvolvimento adequado do Special, assim como o sucesso no seu negócio de venda de peles, que lhe possibilitou fundos suficientes para alcançar o seu sonho de tenra idade, quando viajava de bicicleta até ao circuito de Brooklands para ver as provas.  A sua rivalidade com Parry Thomas e o seu Babs Special de 27 litros tornar-se-ia relativamente conhecida pela alternância de vitórias em provas do género, mas acabaria por ser o recorde de 220 km/h em Brooklands por Sir Henry Birkin aos comandos de um Bentley Blower que motivaria Cobb a desenvolver o seu próprio automóvel.

Reid Railton, responsável pelos automóveis Railton-Terraplane, equipou o automóvel com um motor Napier Lion XIA de 12 cilindros em “W” de baixa rotação com proveniência abundante na aviação da época, tendo este sido instalado num chassis extremamente robusto em aço. Devido à constituição de três secções com quatro cilindros (a distarem 60° entre si) com duplas árvores de cames para cada uma, às quais se aditavam quatro válvulas e duas velas por cilindro, exigia-se a implementação de um sistema de escape triplo relativamente complexo.


Escolhido pela sua potência bruta, o W12 de 24 litros da Railton possuía associados três carburadores Tripple Claude-Hobson e estava conectado a uma caixa Moss de três velocidades de fabrico especial com tracção às rodas traseiras. Estima-se com certeza valores de potência a rondar os 540 cavalos, assustador se ponderarmos o elemento adicional de ausência de travões na dianteira. Apesar da sua avassaladora capacidade, o bloco do W12 apresentava dimensões inferiores às dos seus contemporâneos, o que permitia uma carroçaria com linhas curvilíneas mais apuradas.

No habitáculo predominam os indicadores Jaeger e um volante de quatro hastes da Bluemel. O espaço disponível era superior ao habitual para comportar Cobb, de estatura elevada, dotando-se ainda o assento de diversos ajustes para comportar outros pilotos. Tal como era habitual há época, o acelerador assumia uma posição central, com a embraiagem e o travão a ladearem o pedal de utilização predominante.


Um olhar mais atento à porção frontal do Railton permite analisar a estrutura reforçada, as molas duplas de larga haste e um eixo frontal rígido adequado para suportar o peso substancial do motor aplicado em posição longitudinal. Na porção traseira seriam aplicadas molas elípticas duplas acopladas a um eixo móvel.


Um outro pormenor construtivo de relevo no Special foi a aplicação de pneus de dimensões fora do normal de encomenda especial à Dunlop

A ausência de sistema eléctrico (e, como tal, de limpa pára-brisas e faróis) significava que o Special, apesar do seu tamanho (4,7 metros de comprimento) e peso (mais de 2000 kg, necessitava de ser empurrado para motivar o funcionamento do motor, sendo que a ausência de uma marcha-atrás aliada a um circulo de viragem de 22 metros significavam que as eventuais manobras ficavam a cargo do mesmo sistema.

Palavra de Ordem: Vencer

Com efeito imediato, o Napier-Railton teve sucesso em Brooklands vencendo a sua primeira prova no August Bank Holiday Meeting de 1934 e as prestigiadas 500 milhas de BDRC em 1935. Com as tonalidades alumínio escovado e preto a predominarem, o Railton apresentou uma velocidade média por volta de 194 quilómetros por hora e uma velocidade recorde de volta de 198,4 quilómetros por hora. Este seria o princípio de uma carreira de sucessos para Cobb e o seu Special.

Apenas 17 pilotos foram capazes de percorrer os 4,5 quilómetros de Brooklands a mais de 210 km/h, sendo há altura o feito congratulado com uma insígnia comemorativa para os pilotos que o alcançassem. Cobb haveria de lograr este feito e impor um novo recorde de velocidade para o circuito em 1935, alcançando os 230,7 km/h. Seria desta passagem que surgiria a imagem de Cobb ao volante do Special em pleno voo ao atravessar a zona da ponte sobre o rio Wey a mais de 200 km/h. Um recorde que nunca seria batido, por um automóvel que acaba por sobreviver para lá do circuito em que se assumiu.


Com o auxílio de pilotos de topo para completar a sua formação seriam quebrados recordes no circuito de Monthlery em Paris (mas não antes de Cobb, numa primeira tentativa, passar para lá do banking da oval, felizmente sem consequências de maior) e nas planícies de sal do Utah, onde seria registada a velocidade de 244,57 quilómetros por hora de média ao longo de 24 horas, nas quais se contabilizaram trocas de pilotos, trocas de pneus e reabastecimento.

Após inúmeras competições e vitórias, a última do Special seria em 1937, em que Cobb alcançaria uma nova vitória nas 500 milhas de Brooklands. Findava-se a carreira de Cobb aos comandos do Special com um total de 47 recordes de velocidades quebrados.

Vida Pós-Special

Com a última prova do Napier-Railton Special surgiria a oportunidade de Cobb procurar bater o recorde geral de velocidade em terra nas planícies de sal de Bonnevile, algo que ocorreria em 1939 com uma velocidade de 525 quilómetros por hora. Entre 1943 e 1945 serviria a Força Aérea Britânica na Segunda Guerra Mundial, retomando após este período as suas tentativas de bater recordes de velocidade. Em 1947 regressaria a Bonneville batendo um novo recorde geral de velocidade com uma marca de 642 quilómetros por hora.

Cobb faleceria em 1952 numa tentativa para alcançar um recorde de velocidade aquática com uma lancha de alta velocidade no lago Ness, na Escócia, sendo o seu Napier-Railton vendido ao aeródromo de Dunsfold para testes de travões e de para-quedas no circuito anexo. Após o seu serviço militar, o Special voltaria a propriedade particular, competindo de novo na década de 50 e sendo exibido no Museu Nacional dos Motores de Beaulieu. Durante os anos 80 mudaria de mãos por duas vezes, uma das quais na posse do proprietário da Aston Martin, mas seria na década de 90 que regressaria a casa.

O Napier-Railton é de tal forma reconhecido como um ícone do desporto automóvel britânico que, para assegurar a sua permanência em Brooklands, foram angariadas 800.000 libras através de doações particulares em 1997, acabando por se tornar, já nos dias de hoje, numa peça do Museu de Brooklands, local de repouso apropriado para o recordista da variante externa e da versão de grand prix do extinto circuito.

Apesar da idade do Special, este mantém o motor e caixa de velocidades originais, tendo a combinação já percorrido mais de 20000 quilómetros competitivos, o que certamente nos permitirá indagar da resiliência dos componentes.

Actualmente efectua passagens semestrais perto do Museu de Brooklands, assim como efectua aparições em eventos históricos em Inglaterra, nomeadamente no Goodwood Festival of Speed, representando mais um motivo entre tantos outros, para a visita a um evento cada vez mais especial.

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