Clássicos • 07 Jun 2018
O “garimpo” de automóveis clássicos não é um negócio como outro qualquer. Mexe, por vezes, com sentimentos humanos delicados, que exigem do “garimpeiro” paciência, tolerância e empatia. Exemplo: a viúva, ou o filho órfão, que relutam em se desfazer de um veículo herdado. Ou o proprietário que, por qualquer razão, se afeiçoou a determinada máquina. Nesses, e em outros casos semelhantes, a experiência me ensinou que o melhor é jamais forçar a barra para apressar a concretização de um negócio. Com o tempo, na hora certa, uma boa oferta poderá selar a tão desejada aquisição.
Mas há situações nas quais nenhuma habilidade diplomática ou qualquer quantia em dinheiro serão capazes de reverter a decisão de alguém que se recusa terminantemente a vender um carro. Aconteceu comigo mais de uma vez. Uma delas, porém, foi especialmente inesquecível.
Fiquei sabendo da existência de uma Alfa Romeo Spider dos anos 1970 abandonada havia muitos anos na garagem de um restaurante no centro da cidade. Meu informante me alertara de que a família proprietária do estabelecimento já havia recusado diversas ofertas pela raridade. Mas me aconselhou a arriscar mais uma tentativa: quem sabe teriam mudado de ideia?
Animado com a possibilidade de minerar uma pepita de ouro, fui jantar no restaurante. A comida era boa. Puxei conversa com a filha do proprietário e lhe perguntei, como quem não quer nada, se havia de fato uma Alfa Romeo no fundo da garagem. Acrescentei que eu andava justamente à procura de um modelo esportivo como aquele. A expressão da moça se alterou bruscamente. O sorriso amável de segundos atrás desapareceu. Com ar grave, ela sentou-se à minha frente e me encarou com olhos marejados. Demorava a falar. Constrangido pelo silêncio, eu não sabia o que dizer. Perguntei-lhe o que havia feito de errado – já me desculpando antecipadamente por uma imperdoável gafe.
Foi então que, entre lágrimas, ela me confidenciou que o automóvel pertencera ao seu irmão, morto em um assalto. Desde o fatídico evento o carro nunca mais havia sido sequer ligado. Estava como o irmão o deixara – coberto, porém, pela pátina poeirenta de mais de uma década de abandono. Lamentei, sinceramente, o infeliz destino do rapaz, mas argumentei que trazer a Alfa à vida seria, talvez, uma forma de homenageá-lo: de onde estivesse, por certo ele gostaria de ver o seu bonito carro rodando outra vez e, principalmente, bem cuidado.
Meus apelos foram inúteis. A moça me informou que a família havia tomado uma decisão irrevogável: aquela Alfa jamais seria negociada. Permaneceria imobilizada naquela garagem até apodrecer completamente. Ela usou exatamente esta expressão: apodrecer!
Naquela noite, dispensei a sobremesa e o café.
Irineu Guarnier Filho é brasileiro, jornalista especializado em agronegócios e vinhos, e um entusiasta do mundo automóvel. Trabalhou 16 anos num canal de televisão filiado à Rede Globo. Actualmente colabora com algumas publicações brasileiras, como a Plant Project e a Vinho Magazine. Como antigomobilista já escreveu sobre automóveis clássicos para blogues e revistas brasileiras, restaurou e coleccionou automóveis antigos.