Clássicos • 25 Fev 2020
Os meses chuvosos são tipicamente sinónimo de menos clássicos na estrada, quer pela óbvia vertente de preservação, quer pela maior propensão a desaires automóveis.
Certamente os mais ávidos pela salvaguarda darão por si a dizer vezes demais que “se chover, o clássico fica na garagem”. Confessando, mais cumpridor deste mandamento é praticamente impossível (em seis meses apenas caí na tentação uma vez, e tratando-se do religioso dia de certificação), mas há vezes, e vezes.
Ao esmorecer no leito do sofá de sala ao fim de mais um dia de labuta, veio o pensamento de a derradeira descontracção vir de uma condução em hora já alongada ao volante da minha Blau (baptismo recente da matriarca automóvel cá de casa).
Sem mais demoras, e como que acerbado por uma súbita lufada de ar, dou início ao ritual que preconiza qualquer saída ao volante do pequeno 1602: a recolha da chave do seu local de repouso, da boina (mais pela aragem nocturna do que pelo sol inexistente), das luvas, e do fiel kit de rápidos reparos. Nove a treze minutos depois (valor proveniente de um fatigante desenho de experiências), e com o alcance das temperaturas certas, tudo pronto.
O roteiro foi o típico de domingo, com um best of dos locais de natureza cinematográfica da cidade. Entre a marginal da Praia Norte, o Forte Santiago da Barra, o topo de Santa Luzia (sem nunca esquecer a afamada Rampa), e a Avenida dos Combatentes da Grande Guerra, acabo por me recordar da noção de tempo, e da previsão meteorológica que havia visto há já hora e meia atrás. Dá-se então o inevitável, e gota após gota, a intensidade eleva-se.
Pelo conhecimento de locais de abrigo (ou não fosse a mente já anteriormente ter perspectivado tal situação afligente), inicio um desvio de rota até ao estacionamento subterrâneo mais próximo, o que em Viana do Castelo se traduz numa distância percorrida em 2 minutos para qualquer direcção. Já havia tanta vez feito caso da situação, que achei caricato o recurso a um destes como fonte de abrigo, mesmo na chamada “hora H”, em que os céus se abrem em toda a plenitude, e um aguaceiro passa a dilúvio.
Ao início dou por mim numa imensidão de espaço livre, com um lugar ocupado a cada cem, mas com o aumento da deslocação subterrânea, também aumentava a recompensa, e os olhos, já cansados, começam a reconhecer as curvas que lhes são apresentadas.
Clássicos. Para onde quer que olhasse, clássicos. Dispersos pela zona mais “profunda” do parque, alguns sob uma qualquer coberta, outros destapados, em melhor e pior estado de conservação, com maior e menor proximidade ao automóvel do lado, mas, ao fim, clássicos!
Levo a Blau à paragem junto a uma das silhuetas mais conhecidas, e vejo a fotografia na minha mente. A imaginação torna-se realidade, e visualizo a foto seguinte, e a seguinte, tendo nos interlúdios os mais puros momentos de contemplação e admiração para o tesouro que havia descoberto.
Certamente, e pelos sinais mais óbvios, havia automóveis deste grupo que não se moviam à semanas, talvez meses, passando decerto desapercebidos ao típico utilizador do espaço, com a premência de picar o ponto pelas oito, e de o despicar pelas dezassete, mas existe uma certa beleza nesta natureza morta, nas linhas empoeiradas, no “velho” e no restauro, beleza essa que não encontrou melhor momento de admiração do que as “altas” horas da madrugada.
Escusado será dizer que o tempo passado sob a terra foi o suficiente para que as águas se esgotassem e, perante tal conclusão, é de forma célere e algo desgostosa que abandono a boa companhia, e inicio um sprint caseiro pela cidade, que vê a sua conclusão no local de pernoite designado, mesmo antes de novo dilúvio.