Londres-Brighton: Os veteranos do automobilismo

Eventos 02 Dez 2018

Londres-Brighton: Os veteranos do automobilismo

Por António Grilo

Um governo liderado pelo partido conservador e suportado por uma coligação em Westminster lidera os destinos do Reino Unido e a Rainha é já a monarca há mais tempo no trono na história da monarquia britânica. Desengane-se: estamos a 14 de Novembro de 1896, em plena época Victoriana. O bairro de South Kensington, em Londres, ocupa agora o que até há 40 anos foram as quintas que forneciam frutas e legumes à capital do Império Britânico, e perpetua a memória da “Grande exposição da indústria de todas as nações” mais tarde Exposição Universal, ou simplesmente Expo e do homem que a sonhou e concretizou, o Príncipe Alberto de Saxe-Coburgo-Gotha, consorte da Rainha

Victória. Londres mudaria para sempre depois dessa pioneira e visionária Expo de 1851.

 

As avenidas largas e arborizadas de South Kensington circundam os museus de História Natural e da Ciência, também impulsionados pelo Príncipe, e nelas circulam, sobretudo, peões e carros puxados por cavalos que estacionam em pequenos arruamentos nas traseiras das casas, os mews (estábulos). No seguimento do primeiro “salão automóvel” que trouxe a Londres uma vasta mostra de 10 modelos em Maio passado, alguns automóveis circulam no país, embora sob grande controvérsia. Se uns temem os perigos do automóvel, a crença de outros no futuro da tecnologia já levou à recente abertura da primeira fábrica britânica de automóveis, em Coventry.

 

Em Fevereiro, Walter Arnold foi multado por exceder o limite legal de 3.2 km/h (2 mph) dentro das cidades. O caso teria certamente feito a capa do Daily Mail, não fosse o jornal ter sido fundado três meses mais tarde. Contudo, Julho traz uma primeira conquista: é revogada a lei que obrigava a que um homem a pé, empunhando uma bandeira vermelha, precedesse todos os automóveis avisando os peões da sua aproximação. Porém, a morte de um peão por atropelamento no mês seguinte, deu renovada força aos cépticos do automobilismo. Por seu lado, os entusiastas do transporte automóvel fazem notar que se tratou de um acidente, que o condutor foi absolvido e acusam a legislação de estar ultrapassada impondo um limite de velocidade de 6.4 km/h em estrada – que já era o dobro do permitido dentro das cidades. Mas hoje tudo muda. Hoje entra em vigor uma nova lei, “Locomotives in the highway Act”, que dá resposta aos desejos do poderoso lobby pró-automóvel: o limite de velocidade passa para 14 milhas por hora (22.5 km/h).

 

 

O êxtase instala-se e um grupo de entusiastas reúne-se num hotel no centro de Londres para comemorar aquilo a que chama a “emancipação”. Depois do obrigatório pequeno-almoço à inglesa, e de simbolicamente rasgarem uma bandeira vermelha ao meio, partem para uma viagem de 97 km até Brighton não sem antes receberem da organização um aviso: “Os proprietários e condutores devem ter presente que os automóveis estão em período experimental em Inglaterra e que qualquer atitude impulsiva ou descuidada pode afectar a indústria deste país”. Três horas, 44 minutos e 35 segundos depois o primeiro participante chegava a Brighton: era Leon Bolée, um engenheiro francês, a bordo de um triciclo automóvel por si construído com um motor de três cavalos a gasolina. Conseguiu a estonteante velocidade média de 22.3 km/h, quase superior ao recém-aprovado limite legal de velocidade!

 

Felizmente, a velocidade média da evolução legal e tecnológica do sector automóvel foi superior à de Leon Bolée em 1896 e o automobilismo era já uma realidade nas primeiras décadas do século XX. No entanto, aquela pioneira conquista nunca foi esquecida e, em Novembro de 1927, um grupo de 37 entusiastas partiu de novo para a viagem entre Hyde Park e Brighton criando uma tradição que se mantém até hoje. Em cada ano, no primeiro Domingo de Novembro, centenas de entusiastas de automóveis antigos e milhares de curiosos, juntam-se em Londres para o mais antigo evento automóvel que acontece ininterruptamente há 122 anos, com excepção dos anos em que durou a II Guerra

Mundial.

 

Este ano foi no dia 4 de Novembro que decorreu o famoso Londres-Brighton ou “London to Brighton Veteran Car Run” no nome oficial. Apresentaram-se em Hyde Park mais de 400 inscritos vindos de tudo o mundo – dos Estados Unidos à Austrália, da África do Sul à Suécia – com automóveis construídos entre 1893 e 31 de Dezembro de 1904. A chuva deu respeitosas tréguas a estes veteranos do transporte automóvel e às 6h59, mal o Sol nascia e mal se via, os primeiros automóveis partiam. Desciam junto a Buckingham Palace, desfilavam até Trafalgar Square, passavam em Westminster e seguiam pela histórica A23 no encalço da história, da tradição e do tributo àqueles que há mais de um século pugnaram pela realidade automóvel.

 

Darracq 15 cavalos de 1904, aproximando-se da partida em Hyde Park

 

Este ano, a organização – a cargo do Royal Automobile Club (RAC) desde 1930 – abriu, pela primeira vez, dois percursos alternativos em que parte dos concorrentes seguia pela Westminster Bridge no percurso original de 1896 e outra parte continuava na margem norte do Tamisa até à Lambeth Bridge seguindo depois por Vauxhall, Clapham e Mitcham permitindo assim a mais expectadores conheceram os veteranos do automobilismo e tornando mais expedita a saída de Londres. Todos os concorrentes seguiriam depois pelo percurso original a partir de Croydon cruzando as regiões de Surrey e Sussex.

 

Em todas as cidades e vilas por onde passaram, estes automóveis, com mais 100 anos, foram saudados com salvas de palmas, cumprimentos e muitas fotografias por milhares de curiosos que se juntaram ao longo da estrada e quiseram admirar a diversidade de formas, cores, materiais e tamanhos que desfilavam sobre 3 ou 4 rodas e ouvir o trabalhar dos motores, movidos a gasolina ou água, com 1.25 a 60 cavalos. Houve até quem se aventurasse a fazer a viagem em bicicletas da época! Um outro elemento de charme foi a escolha de traje da época por alguns participantes, embora este hábito esteja a cair em desuso.

 

O que não está em desuso, é o apoio a causas sociais. Como habitual, muitos participantes aproveitaram o estrelato dos seus automóveis para os decorar com a papoila da Real Legião Britânica, associação que apoia os veteranos de guerra e suas famílias promovendo o seu peditório anual em Novembro, evocando armistício da I Guerra Mundial.

 

A novidade de 2018 foi a parceria oficial com a Movember Foundation. Este movimento mundial que tem o seu nome na fusão das palavras inglesas para bigode (moustache) e Novembro (November) encoraja todos os homens a deixar crescer o bigode durante este mês como forma de alertar e dessa forma prevenir doenças como o cancro da próstata. A Movember Foundation deu a todos os participantes grandes bigodes de diferentes formatos com que muitos – homens e senhoras – fizeram todo o percurso.

 

Uma divertida equipa com todos os elementos equipados a rigor com os bigodes da Movember Foundation incluindo o automóvel, um Mors 15 cavalos de 1902

 

Apesar da motivação recebida na estrada e da muita preparação, alguns participantes foram ficando pelo caminho, fruto de problemas mecânicos, furos, etc. Em todo o caso, muitos foram aqueles que completaram com sucesso a viagem cumprindo o objectivo de chegar a Brighton antes das 16h30, contando-se entre eles Albert Eberhard, único representante de Portugal a bordo de um magnífico e impecavelmente restaurado Mercedes de 1904, com 45 cavalos, a que ninguém conseguiu ficar indiferente.

 

Apesar do exíguo espaço em muitos dos automóveis, a companhia de ferramentas, boosters, bombas de ar, etc. foi ditada pela prudência e/ou a experiência de muitos. “Já só tenho 1 psi no pneu traseiro esquerdo!” dizia um concorrente à chegada enquanto muitos confirmavam que, apesar dos problemas que pudessem ter, “nada nos tira um sorriso da cara quando conduzimos estes automóveis”.

 

Vista do paddock de chegada em Brighton

 

Um dos bem-sucedidos concorrentes, num Oldsmobile de 1902, acordou “às 3h30 da manhã para levar o automóvel no atrelado de Southampton até Londres” onde se juntou à família que lá tinha pernoitado. A família ficou encarregue de levar o atrelado até Brighton mas o pai fez questão que completar “o sonho de fazer este passeio aos 50 anos com toda a família a cruzar a meta a bordo do Oldsmobile”. Este é apenas um testemunho da tradição familiar do Londres-Brighton em que muitos dos automóveis são tripulados por várias gerações da mesma família – avós, pais e filhos – sendo os mais novos já a quinta ou sexta geração a fazer o passeio.

 

Quem hoje, em 2018, visita Londres vai encontrar semelhanças políticas, vai notar que os mews de South Kensington são muito procurados para habitação e vai ver muitos automóveis clássicos na rua, faça chuva ou faça Sol. Em breve, talvez veja automóveis sem condutor e talvez tenha receios ou receba avisos semelhantes aos de 1896. A certeza é que, se vier em Novembro, vai assistir ao regresso dos veteranos do automobilismo à estrada. Que assim seja por muitos anos!

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