Eventos • 10 Set 2019
Há duas razões que levam alguém a gastar férias numa viagem à Bélgica a meio de Maio: ou é um turista chinês, ou, com tantos destinos turísticos ali à volta, é alguém do contra. Sou um bocadinho do contra, confesso, mas ainda assim encontrei razões diferentes para lá ir. Tenho alguma família na Bélgica, e desde pequeno que me perguntam quando é que lá vou. Não é difícil perceber porque nunca aconteceu: o meu eu em criança era alérgico a chocolate. O meu eu em criança não gostava de cerveja. O meu eu em criança não gostava do puré do Stoemp nem molhos da Carbonade Flamande. Que razões teria eu para ir à Bélgica?
Hoje em dia sou um pouco mais crescido e reconheço os pequenos prazeres da vida, como ir em jejum ao Delirium em Bruxelas às três da tarde almoçar uma cerveja de tripla fermentação. Ainda assim, cumpri a promessa à minha família de os ir visitar ao país que dá nome ao meu restaurante preferido no mundo. Porém, o motivo da visita não seria só este. Consegui encontrar mais uma forma de empobrecer alegremente, sem contar com drogas ou o meu KE20, e a ideia é uma vez por ano, fazer todos os possíveis para conseguir visitar um evento importante do calendário internacional de competição de clássicos. De cada um deles trazer uma boa história, boas imagens, experiências, e claro, alguns bragging rights.
Depois de visitar o Goodwood Revival em 2017, jurei que só voltaria a pisar um circuito se as temperaturas fossem positivas, e felizmente Spa Classic foi o caso. Curiosamente, esta viagem esteve quase para não acontecer. Em Maio era suposto estar na Índia em trabalho, mas com o adiamento da viagem de dois meses para finais de Junho, consegui ir a tempo de marcar avião para Spa mesmo antes do preço do voo se tornar proibitivo. Falei com a família na Bélgica e combinei ficar alojado com eles, em Drogenbos, mesmo à entrada da cidade. Comprei o passe geral de 3 dias no site da Peter Auto, uma pechincha para a dimensão deste evento, por apenas 35€; imprimi todos os guias de Spa, planejei todos os passos das viagens, e estava pronto. Faltava-me apenas um pormenor: o dresscode. Ao contrário do Revival, o Spa Classic não faz exigências a este nível. Ainda assim, achei que teria mais piada entrar no espírito vestido a rigor. Com alguma surpresa, fui o único a pensar assim.
Quando aterrei no CRL em Bruxelas, e posteriormente no expresso até Gare du Midi, foi difícil não reparar no grande corpo militar presente, assim como os separadores de betão espalhados um pouco por todo o lado. Midi não a zona mais agradável para se estar na Bélgica, muito menos depois dos atentados (então) recentes. Felizmente a minha rotina levaria-me para bem longe do centro urbano.
Bem mais longe do que calculei inicialmente, devo acrescentar. No fim de contas, apercebi-me que todos os dias teria que fazer uma viagem de ida e volta numa distância equivalente a Braga – Coimbra, num total de 5h diárias em transportes públicos. Foi parvo aperceber-me que seria bem mais rápido e barato apanhar um comboio ou autocarro para Amesterdão do que viajar para Spa. Dependendo dos horários variáveis dos transportes, acordei todos os dias entre as 6h e as 7h da manhã. A primeira passagem era de 20 minutos de autocarro entre Drogenbos e Gare du Midi. Em Midi, apanhava o comboio que vai até Verviers, num total de 1h30. De Verviers, o autocarro 294 ou 395 levar-me-ia até Spa Francochamps, numa viagem de 50 minutos, atravessando uma paisagem tão bonita que me levava a duvidar se aquele era um bus suburbano ou turístico. A Bélgica rural é demasiado bonita para não ser visitada.
No final da viagem de bus, seriam 10h da manhã, e finalmente chegava à pequena vila de Francochamps, bem nas profundezas da Bélgica francófona rural. É difícil vir ao engano para um local destes. Todos os cafés, pensões e restaurantes tinham um nome que de alguma forma remetia para o desporto motorizado. Estacionados nas bermas das estradas estariam vários grupos de clássicos e superdesportivos, com os donos seguramente hospedados nas redondezas.
Nestas circunstâncias, dada a alta e previsível concentração de automóveis entusiasmantes, é fácil banalizar os spots, mas não em Spa. Um BMW M4 GTS e M1, Aston Martin AR1, Lotus Esprit V8, ISO Rivolta, Al Melling Wildcat são apenas alguns dos exemplos de exóticos que me passavam em frente aos meus olhos, sem sequer procurar. Ainda antes de entrar oficialmente no recinto, e para garantir que ninguém falha a saída para a pista, somos presenteados com várias infraestruturas externas que dão apoio à actividade motorizada da pista, inclusivé a RSR Spa Racing Academy, num edifício rústico discreto, apenas denunciado pelo Porsche 991 GT3 RS estacionado à porta. Spa Francochamps pode ser uma pequena vila, mas aqui não faltam meios para alimentar esta paixão pelas corridas.
Durante os meus três dias em Spa assistiria a 300 automóveis de competição, divididos em 8 categorias, e cerca de dois milhares de carros expostos nas zonas dedicadas aos clubes. É muita oferta para apenas 35€: Classic Endurance Racing, dividido na classe 1 e 2, para GTs e Protótipos das décadas de 60, 70, até inícios de 80; Group C Racing, para protótipos que correram em LeMans entre ‘82 e ‘93; o 2.0L Cup, destinado a Porsches 911 de 2 litros pré-’66; Euro F2 Classic, para automóveis de Formula 2 participantes no campeonato europeu entre ‘67 e ‘78; o Heritage Touring Cup com exemplares do campeonato de Turismo europeu entre ‘66 e ‘84; Sixties Endurance para desportivos e GTs dos anos sessenta e por fim, o Troféu GT, “The Greatest Trophy” para uma selecção de automóveis marcantes dos campeonatos de endurance dos anos 50 e 60. É um plantel gigantesco, que obrigou a umas boas caminhadas pelos vários paddocks espalhados pelo relativamente curto recinto “útil” de Spa.
Apesar do circuito ter aproximadamente 7 km de perímetro, toda a área útil para as equipas, serviços e público concentram-se dentro do triângulo imaginário formado pelas curvas de “la source”, a chicane e “raidillion” (sequência de curvas onde integra a infame Eau Rouge). O nível de acesso dado a portadores de bilhetes ordinários é surpreendente. Fora as áreas estritamente reservadas a fotógrafos, consegui visitar todos os pontos da pista que necessitei. Esta situação torna-se engraçada no paddock principal, onde o público passeia e tira fotos livremente entre as equipas que trabalham nos automóveis. Este grau de acessibilidade liberal quase me faz esquecer, ao mesmo tempo que reforça, que estamos lado a lado com pilotos e automóveis lendários da história automóvel, e é um modelo que recomendo fortemente a todos os eventos motorizados.
Fora dos paddocks, também não faltava acção: a adesão dos clubes de clássicos da região foi avassaladora, com cerca de 2000 carros expostos, de vários clubes dedicados à BMW, Aston Martin, TVR, Ferrari, Lotus, Nissan / Datsun entre outros tantos. Quando digo “da região”, não me refiro aos arredores de Francochamps. Perdi conta ao número de automóveis que vi provenientes de Inglaterra, Luxemburgo, Alemanha, Suíça e França. “É ali ao lado”, podem pensar. É tão ao lado como a distância de qualquer cidade portuguesa ao Vasco Sameiro, Estoril ou Algarve. Deu-me um imenso prazer poder fazer parte do Spa Classic.
Longe das pistas, a beleza do cenário, a limpeza e estado de conservação das infraestruturas, toda a organização e logística do evento era de uma classe estelar. A atenção ao detalhe era gritante até em aspectos tão triviais como as barraquinhas da alimentação. Nada de roulotes externas duvidosas, nada de dinheiro vivo a circular. Os quiosques eram pré-fabricados e geridos por um staff jovem, simpático e vestido a rigor. O menu reflectia o lado mais casual da cozinha Belga, dedicando imenso espaço à especialidade da casa, a belgique friterire. A moeda de troca eram pequenos cartões plásticos com o branding do evento, que podiam ser comprados aos packs de 10, sendo que pagar em dinheiro não é opção.
Nos divertimentos em pista, haviam várias demonstrações e mini-jogos da época, incluindo o “poço da morte” com os entertainers também vestidos a rigor, obviamente. Achei especialmente piada a um pequeno stand com uma pista de carros telecomandados em que os participantes se sentavam numa baquet com volante e pedais ao invés de usarem um comando.
Contudo, no meio de tanto entusiasmo, fiquei desiludido com a feira de Automobilia, bastante reduzida e pobre, mas especialmente com a loja oficial do circuito Spa Francochamps. Depois de ter visitado a loja de Goodwood, provavelmente o melhor exemplo de gift shop alguma vez concebido para um evento motorizado, é difícil ficar surpreendido. Ainda assim, a loja de Spa nem sequer merece um “Satisfaz menos”. Pouquíssima variedade de gifts, já de si genéricos, corriqueiros e sem grande respeito pela marca. Como se isto não fosse mau, tudo tinha um preço exageradamente inflacionado. Conclusão: os amigos foram todos corridos a postais.
Em 2017 aconteceu e este ano não foi diferente. Sou daquelas pessoas que sofre de uma ansiedade parva, e que mesmo com um plano, acabo o dia sempre a pensar “meto-me em cada uma”. Meto-me em cada uma sim, e ainda bem. O evento para 2019 ainda não está definido, mas uma coisa é certa: Visitar um circuito por ano está a revelar-se, a par do café sem açúcar, a melhor decisão que tomei nos últimos tempos.
Dica para turistas: Se forem à Bélgica, não se esqueçam de visitar o Auto World em Bruxelas (e o museu da guerra mesmo ao lado).