O curioso Clube dos Packard mortos na Noruega

Clássicos 18 Jul 2018

O curioso Clube dos Packard mortos na Noruega

Por Adelino Dinis

Viajei para a Noruega esta semana, a primeira vez que fui este país. O motivo não podia estar mais distanciado dos veículos clássicos, porque fui testar dois novos Hyundai, um elétrico e outro a fuel cell de hidrogénio.

 

A Noruega é um dos países com maior interesse e investimento ligados à criação de uma rede de produção e abastecimento de hidrogénio, o que justificou esta longa, mas muito curta viagem— com uma estadia de apenas 18 horas.

 

Já tinha feito o primeiro contacto com o SUV elétrico, que em Portugal se vai chamar Kauai e chegou a altura de passar para o Hyundai Nexo. Este é o revolucionário modelo com célula de combustível, que vai ser lançado muito em breve no mercado norueguês. No resto da Europa, depende da criação de redes de abastecimento de hidrogénio. É praticamente impossível que venha para Portugal.

 

Estava já a terminar o meu test-drive a solo de cerca de 50 quilómetros, quando passei ao largo de um edifico banal. Parecia um pequeno armazém. Mas pude vislumbrar quatro automóveis americanos dos anos 50, atrás do edifício. Um deles era claramente um Studebaker Champion, aquele modelo com uma grelha curiosa: parece que o automóvel está a chupar um limão!

 

O armazém visto da estrada
O armazém visto da estrada

 

Decidi voltar para trás e investigar aquela aparição com o detalhe possível. Parei o silencioso Nexo ali perto e desci uma rampa de terra. Agora já podia ver que, além do Studebaker — aquela grelha não lembra ao diabo, de facto… — estava um vistoso De Soto, um Nash Rambler e, mais afastado um pouco, um Kaiser.

 

O Nash Rambler, o Studebaker Champion e o De Soto Coupe
O Nash Rambler, o Studebaker Champion e o De Soto Coupe

 

Um tema fora do comum

 

Mesmo em frente estava a entrada de uma garagem. Aproximei-me e vi um cavalheiro lá dentro. Soltei um “escuse me” e um “hello” e perguntei-lhe se falava inglês. Ele respondeu um tímido: “a little” e para mim chegou.

 

A discreta entrada da garagem
A discreta entrada da garagem

 

Entrei e expliquei-lhe de onde vinha e o que andava por ali a fazer. Disse-lhe que estava muito surpreendido por ver aqueles automóveis tão raros e bem apresentados.

 

Ele disse-me que se chamava Per Ronninj e explicou que aquilo era um clube. Mas não é bem um clube como os outros. Tinham uma lista fechada de modelos e marcas, que só incluía construtores americanos que abandonaram a produção depois da II Guerra e que não tinham relação com os três grandes: General Motors, Ford e Chrysler.

 

O clube foi fundado em 1977 e inclui apenas oito marcas americanas, todas extintas entre 1946 e 1966. Por isso se chama EAC (Eight Amcars Club)!

 

Packard Clipper dos anos 40, Studebaker e De Soto dos anos 50
Packard Clipper dos anos 40, Studebaker e De Soto dos anos 50

 

Per Ronninj, junto a um belo e enorme De Soto
Per Ronninj, junto a um belo e enorme De Soto

 

À cabeça estava a Packard, mas também a Nash, a Hudson, a Studebaker, a De Soto, a Kaiser, a Frazer a Henry J. (sub-marca da associação Kaiser-Fazer) e a Willys. Muitos destes construtores sobreviveram à II Guerra e produziram bons automóveis, mas não conseguiram manter o ritmo de desenvolvimento para competir com o poderoso triunvirato da indústria americana.

 

Interior do Studebaker Custom
Interior do Studebaker Custom

 

Packard Clipper e Studebaker Custom já dos anos 60
Packard Clipper e Studebaker Custom já dos anos 60

 

Na oficina estavam um Studebaker coupé, com motor V8, cujo restauro estará terminado em breve, um lindo Packard Clipper, provavelmente em manutenção e um estranho Henry J., que era um modelo de baixo custo da Kaiser, numa tentativa quase desesperada de se manter rentável.

 

Este é o Studebaker que Per está a acabar de restaurar
Este é o Studebaker que Per está a acabar de restaurar

 

Identifiquei-o de imediato, porque existe um bom exemplar em Penafiel. O Per explicou-me que foram vários exemplares para a Noruega, que nos nos 50 tinha muitas limitações à importação de automóveis.

Como o Henry J. era montado em Israel, um acordo comercial com aquele país permitiu a vinda de várias unidades para perto do Polo Norte.

 

Vários Henry J. vieram para a Noruega via Israel
Vários Henry J. vieram para a Noruega via Israel

 

Além destes, estava também um Nash de quatro portas à espera de ser restaurado.

 

Um Nash à espera de restauro
Um Nash à espera de restauro

 

Volante de um Nash que está na lista para ser restaurado
Volante de um Nash que está na lista para ser restaurado

 

Mas há mais

 

O meu simpático anfitrião levou-me depois ao piso de cima, com ajuda de uma escada de caracol. Ali fica a área de exposição, com mais nove automóveis.

 

Uma das paredes nesta divisão com um pé direito de mais de três metros, está forrada com um quadriculado de centenas de fotografias, que representam todos os automóveis do clube. Com um tema tão restrito, surpreendeu-me saber que tem 100 sócios e 312 automóveis!

 

Um Nash e um Henry J. Note-se a parede forrada de fotos de automóveis do clube
Um Nash e um Henry J. Note-se a parede forrada de fotos de automóveis do clube

 

Lá ao fundo, outro lindo Packard, desta vez, descapotável. A sua alcunha é “Carro do Rei”, porque o Rei Haakon VII da Noruega, no final dos anos 40, quis conduzir um automóvel, em vez de ser sempre conduzido. Não percebia de automóveis e os seus conselheiros indicaram-lhe várias alternativas. O Rei escolheu um Packard descapotável igual a este, porque os reis têm muito jeito para escolher o que é melhor.

 

O Packard do Rei, um belo convertible, um dos ex-libris do EAC
O Packard do Rei, um belo convertible, um dos ex-libris do EAC

 

Outro Henry J. Faz companhia a dois Hudson Hornet de gerações diferentes e um espetacular Studebaker Wangonaire, cuja particularidade é ser descapotável no espaço dedicado à bagagem. A marca anunciava que era excelente para transportar frigoríficos, mas duvido que essa vantagem fosse usada com frequência.

 

Hudson Hornett, um desportivo disfarçado de berlina familiar
Hudson Hornet, um desportivo disfarçado de berlina familiar

 

Um Nash e outro Hudson Hornet, já do final dos anos 50
Um Nash e outro Hudson Hornet, já do final dos anos 50

 

Mas a Wagonaire fazia certamente a delícia das crianças na época pré-isofix e também dos camaramen, que tinham excelentes condições para trabalhar. Daí vários exemplares terem estado ao serviço de estúdios de cinema.

 

Studebaker Wagonaire, ideal para transportar crianças felizes, camaramen e frigoríficos ao alto!
Studebaker Wagonaire, ideal para transportar crianças felizes, camaramen e frigoríficos ao alto!

 

Vista da Studebaker Wagonaire
Vista da Studebaker Wagonaire

 

Um raro Kaiser Manhattan do início dos anos 50
Um raro Kaiser Manhattan do início dos anos 50

 

Mais um imponente De Soto, com cromados envelhecidos e todo o ar de pegar à primeira, antes de entramos na área social. Aqui, parece que voltámos 70 anos no tempo.

 

Um De Soto muito original, com os cromados velhinhos
Um De Soto muito original, com os cromados velhinhos

 

Familiares mas desconhecidos

 

A sala faz lembrar a área comum de uma associação tipo casa do povo, com várias mesas arrumadas em quadrados, respectivas cadeiras, cortinados tradicionais e vasos com plantas.

 

Um espaço confortável e reminiscente dos anos 50 e 60
Um espaço confortável e reminiscente dos anos 50 e 60

 

Área social do clube, com fotos de artistas dos anos 50
Área social do clube, com fotos de artistas dos anos 50

 

De um lado, uma pequena copa, para petiscos e bebidas. É o local de encontro para os membros deste inusitado clube. Não faltam vários gira-discos, muitos LPs empilhados e dezenas de fotos de artistas de música e cinema.

 

Vamos com plantas, cortinados e revistas de época
Vamos com plantas, cortinados e revistas de época

 

O estilo e a atitude são-me familiares, com as poupas levantadas, os cabelos com volume e os olhares sedutores. Mas eu não reconheço um único!

 

Pormenor de um imponente De Soto
Pormenor de um imponente De Soto

 

O Per, percebendo a minha perplexidade, diz: “O presidente do clube é um grande colecionador de memorabilia da época de ouro do Rock n’ Roll norueguês!”

 

Um clube activo

 

O Clube organiza eventos regularmente, sendo que o encontro anual é, evidentemente, no dia 4 de Julho. Ali juntam-se com outros colecionadores de clássicos americanos, mas o Per solta um lamento: “Agora é só Camaros e Mustangs… Mas as pessoas gostam sempre de ver os nossos automóveis, que saem pouco à estrada”.

 

Isto, apesar de, na Noruega não haver, pelo menos para já, qualquer impedimento de circulação dos veículos históricos. Os membros do clube alugam também os seus veículos a turistas e outros eventos especiais, como casamentos ou festas de empresas.

 

Já novamente na oficina, diz-me que o Studebaker coupé verde é dele. Restaurou outro — que ainda tem — há vários anos, e este foi comprado como apoio à recuperação. Mas há uns tempos decidiu que também merecia melhores dias. Recentemente, vendeu um Citroën DS Cabriolet. “Era muito bonito, mas prefiro os nossos americanos. Além disso, vendi-o por bom dinheiro. Estou reformado e é altura de organizar a minha vida.”

 

Despedimo-nos como amigos, antes de eu entrar no Hyundai a hidrogénio. Admitimos ambos que provavelmente é o futuro, mas concordamos também que tecnologia de nenhuma espécie superará o encanto de um grande V8.

 

Quando lhe contei que ia escrever um artigo para o Jornal dos Clássicos, disse-me para mandar cumprimentos a todos. E, se um dia passarem por Sørum, a alguns quilómetros de Oslo, procurem um armazém com clássicos americanos de marcas falecidas. Podem dizer ao Per que vão da minha parte e só darão pelo tempo a passar para trás…

 

A área de exposição é renovada com frequência
A área de exposição é renovada com frequência

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