A Bugatti e a minha paixão

Clássicos 02 Mar 1996

A Bugatti e a minha paixão

Por João de Lacerda

A Bugatti é para mim uma lenda. Porque, se lerem a história de Ettore Bugatti, um homem que vai fazer a sua preparação escolar como artista e que acaba por se tornar, aos 18 anos, o fabricante de um automóvel que é apresentado no Salão de Turin onde ganha o primeiro prémio entre todos os modelos ali expostos, mostra-se um génio autodidata que sem preparação, fabrica um modelo que leva a empresa De Dietrich o contrate como desenhador, num contrato fabuloso para a época e que, por ser ainda menor, Ettore não pode assinar, assinando o seu pai em seu lugar. 

Isto mostra sem dúvida, que os seus automóveis nunca poderiam ser banais. Não poderiam ser como por exemplo os Ford, com todo o respeito que tenho por esta marca, e sim modelos como que saídos da pena e da criação de um Leonardo Da Vinci.

Só assim se pode compreender que um homem que durante 30 anos fabricou automóveis num espaço temporal que lhe daria para os fabricar em centenas de milhar muito largas, apenas tenha produzido 7800 unidades. Logo, as Bugatti tinham de possuir algo de muito fora de comum para entusiasmarem 7800 pessoas ao longo de 30 anos um número de exemplares que uma boa cadeia de montagem e de fabrico em série seria capaz de produzirem semanas e algumas horas. 

Provas mais que suficientes de que Ettore Bugatti punha a sua marca de génio dentro e fora de todos os modelos da marca, fossem modelos de Turismo de Sport ou de Corrida. Mas, genialmente, não apenas no automóvel. Os barcos e aviões, o mobiliário e relojoaria, o vestuário por si criado, desenhado e produzido eram verdadeiras obras de excepção, pares das que Leonardo Da Vinci criara na sua época. 

Daí que, esta paixão que me move pela Bugatti reside no facto de saber que esta marca é diferente de todas as outras. É, breve, um automóvel conceito de arte. Todas as peças que formam uma Bugatti são exemplo de arte pura e simples. Por exemplo, as porcas de aperto são, na Bugatti, diferentes de todas as outras. O seu passo é distinto e isso nota-se. Mesmo se comparadas com as restantes peças usadas pelas grandes marcas de sempre como na Rolls-Royce, se notam diferenças, como que a dizer que só a Bugatti as usa, ali onde Ettore as concebeu em mais lugar algum. Tudo numa Bugatti é diferente. 

Claro que os modelos da marca têm outras concepções que os demarcam e características muito apaixonantes. São máquinas que se distinguem pela sonoridade ímpar, o superior rendimento dos seus motores, o intenso prazer da condução desportiva mas, no global do que é uma Bugatti, estamos diante, sempre, de uma obra-prima, muito para além de boas características e altas performances. Naturalmente, os outros fabricantes e outras marcas dirão o mesmo dos seus automóveis mas, para mim, não conseguem convencer. Certos modelos de outros fabricantes muito famosos, atingem valores de mercado elevados mas, nos Bugatti, esse valor é muitas vezes inimitável. 

Eu não gosto particularmente de Picasso mas, todos confessam, a sua cotação no mercado de arte é elevadíssima face a outros artistas que produziram obras similares, de onde, Picasso deve ter tido uma qualquer característica genial que o demarcou do comum dos restantes. Assim se processa com a Bugatti. A marca tem qualquer coisa a mais que os restantes fabricantes automóveis. 

Todas as Bugatti, desde as fabricadas em 1910 até ás últimas, as famosas 57 já da pena do filho de Ettore Jean Bugatti, são, sem sombra de dúvida, obras geniais. Todas. 

Quanto a Portugal, a paixão que subsiste pelas Bugatti 35, sejam do tipo A, B ou C é sinónimo do peso que estes modelos alcançaram e granjearam no país em termos de desporto e competição automóvel, fosse em modelos de Corrida, fosse em Sport, onde estes soberbos modelos imperavam no período anterior `à Segunda Guerra Mundial.

Nomes de pilotos aos comandos das suas Bugatti 35, que ficaram famosos para a história, os de Lehrfeld, possuidor confirmado de dois modelos 35 um dos quais, o segundo, é hoje de minha propriedade e detentor de um impressionante curriculum desportivo, o 35C de 2,0 litros de cilindrada do José Marinho, do Porto, automóvel onde depois correu o Conde de Monte Real, o 35A de outro nome grande no período, Abílio Nunes dos Santos e que pertence hoje ao meu grande amigo Jacques Touzet, dos mais precisos investigadores Bugatti no país, conhecedor profundo da identidade dos modelos da grande marca. Este Bugatti é precisamente o automóvel que vos surge em imagem. Finalmente, citando alguns exemplos de Bugatti que correram em Portugal, o famoso modelo de Ribeiro Ferreira, do tipo 51, o mais avançado da linha, com motor igual ao que equipa o meu 35B mas com duas árvores de cames à cabeça. 

Sobre este automóvel que participou, por exemplo, no Circuito do Estoril de 1937, uma história deliciosa, daquelas tão deliciosas como só as Bugatti nos sabem dar.

Jacques Touzet, sempre atento e super rigoroso nas investigações e histórias Bugatti, consegue ter acesso a um documento impressionante, original e comprovativo da história final de uma Bugatti que foi portuguesa: a acta descritiva do desmantelamento da Bugatti 51 ex-Ribeiro Ferreira depois ex-Casimiro de Oliveira, numa sucata do Norte no ano de 1943. Não há engano. O automóvel foi pura e simplesmente destruído e ponto final. Esta Bugatti deixou de existir nos anos 40…Década de 70, grande espanto! 

Uma Bugatti 51A é posta à venda nos Estados Unidos com o mesmíssimo número de série da Bugatti que foi de Ribeiro Ferreira. Pela notícia, estava à venda a Bugatti que correra em Portugal. Os números assim o diziam. O automóvel é vendido ao maior coleccionador Bugatti da Europa, residente perto do Mónaco, de nome Uwe Hucke. Alertados por este facto, eu e Jacques Touzet entramos em contacto com este grande bugattista comprovando-lhe através do documento original de 1943 que os números da Bugatti que adquirira não podiam ser os mesmos do automóvel de Ribeiro Ferreira. O homem ia tendo uma síncope! 

Tempos mais tarde, depois de se envolver no assunto o maior conhecedor Bugatti de sempre, Hugh Conway, que dá também o seu parecer sobre este caso, recebo em casa um dos bonitos catálogos da célebre leiloeira londrina Coys onde se divulgava que para breve iria ser leiloada a tal Bugatti, com os números tal e qual os mesmos como se fosse a Bugatti ex-Ribeiro Ferreira. Evidentemente de boa fé, sem o saber, a Coys punha à venda um modelo forjado. Avisamos a conceituada casa de leilões com a comprovante folha de acta original, uma vez mais alvo de estudo por Conway que lhe confere toda a credibilidade. A Coys altera o estatuto da Bugatti, alertando num seu catálogo posterior que “não podemos garantir a autenticidade deste modelo”. Comprado posteriormente por Ivon Dutton, a Bugatti passa a marcar presença nas corridas para veículos históricos, forjada tal qual viera dos Estados Unidos… 

Prova esta pequena e pitoresca história Bugatti que estes automóveis são de tal forma extraordinários que até se deixam falsificar em altas doses e talvez como nenhuns outros de marcas mundiais. 

A belíssima 51 A de Ribeiro Ferreira tal como veio para Portugal.

Confirmadamente, hoje é sabido que os modelos iguais ao meu 35B saíram de fábrica em número de 40, entre 1927 e 1930, numerados como Bugatti verdadeiros. Nem mais um. Sabemos hoje, comprovadamente que existem 48! O que só pode garantir que oito terão sido “inventados” e que, dos originais 40 decerto que volvidos estes anos todos alguns desapareceram. Portanto, em que ficamos? Que foram forjados muitos. Destes 48, quais os verdadeiros? 

Isto é o fascinante da Bugatti e de se investigar sobre ela. É que, o que é mais useiro e natural é que uma peça Bugatti dê para fazer seis. Eu explico. 

Como numa boa e rara cómoda de estilo em mobiliário, que tenha quatro pernas e três gavetas, se ela for dissecada para forjar cómodas iguais, uma perna dá para fazer pernas iguais mas falsas, gavetas também. Portanto, quantas cómodas podem ser feitas, forjadas, a partir dos “cacos” de uma original? Não sabemos…Mas, esperamos vir a descobrir! 

É a paixão destas coisas. Das coisas raras. Como quem de um Picasso, de um Dali, multiplica milagrosamente dezenas de novos Picasso, novos Dali, a partir de fragmentos originais de quadros famosos destes artistas. Falsos ou forjados para valerem um dinheirão, vendidos como a coisa real. Fascinante…como só as Bugatti sabem ser. 

Museu do Caramulo 12 de Janeiro de 1996.
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